São Paulo, quinta-feira, 20 de junho de 2002

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GASTRONOMIA

Um purê de batata mui famoso

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Não conheço o Joël Robuchon, assim, cara a cara. O que sei vem de Patricia Wells em pessoa e de livros e revistas. Acabei de ler um poema de Emily Dickinson que começa assim: "How well I knew her not" (Quão bem eu não a conhecia). É mais ou menos isso.
Joël Robuchon está aqui presidindo o júri do Gourmet Show da Fispal. Um momento e tanto, pois os próprios pares o elegeram o melhor cozinheiro da França, e o guia Gault Millau, cozinheiro do século.
Começou os estudos em Poîtiers e pelo que me lembro ajudava as freiras do seminário na cozinha delas, pouco inspirada. A certa altura, por problemas familiares, parou de estudar, mas alguma coisa naqueles primeiros anos o fisgara. Resolveu ser cozinheiro. Ganhando concursos, aprendendo, foi uma revelação, quase um prodígio. Teve como mentores confessados Jean Delaveyne, um professor -pai, meilleur ouvrier de France. O filho de Delaveyne, ao se decidir por uma carreira, decepciona o pai. Escolhe a sala, e não a cozinha, numa época em que as relações entre os dois setores era tensa (E não o é, sempre? A copa e a cozinha às turras?). Delaveyne tinha o coração aberto para transmitir conhecimentos a filhos postiços e ensina a Robuchon a necessidade de inventar e de criar.
Outra influência foi Alain Chapel, que em 1979 esteve aqui para algumas demonstrações seguidas de jantares. Fez uma única exigência. Manteiga, boa manteiga. Mandaram vir da fazenda um enorme tijolo que foi pousado no mármore sem causar nenhum espanto. Precisava dele para seus purês, que eram uma revelação no setor purê. O segredo? A manteiga, mais manteiga que batata, mais manteiga que cenoura. Mais tarde o purê de batata de Robuchon também ficará célebre, mas era diferente do outro. Visguento.
Alain Chapel dizia: "A comida de um homem é seu reflexo", e morreu cedo de tanto trabalhar esse reflexo. Robuchon já emendava: "Minha felicidade está em preparar a comida que gosto, se os outros a apreciam ou não, isso me é indiferente". Hum?
Abre o primeiro restaurante próprio em 1981, comprando o Chez Jamin, famoso nos anos 60. Cinco anos depois, está com três estrelas. Torna-se a coqueluche de Paris.
Acontece que os restaurantes com muitas estrelas não dão dinheiro. É tudo muito caro. Para que o chef tenha alguma independência, é preciso ganhar a vida abrindo outras portas de outros mundos. Geralmente aparecem duas opções. Contratos fora da França para aulas, demonstrações, consultorias e restaurantes em outros países com seus nomes, sob suas direções. A outra é a indústria agroalimentar, juntando o nome célebre e sua comida a um grande patrocinador. Robuchon trilhou os dois caminhos.
Jean Delaveyne e Bocuse puxam o cordão de franceses que vão para o Japão, influenciam e são influenciados. Robuchon segue os amigos, ele que já se impressionava com o sentimento de dever e alta qualidade do trabalho japonês. Abre em Tóquio o Château-Restaurant Taillevent Robuchon.
Em meados de 90 está em todos os jornais e revistas envolvido numa polêmica de dar água na boca. A famosa "guerre des chefs". A própria imprensa, os sindicatos põem lenha na fogueira. "Os dois chefs de maior prestígio atual, Joël Robuchon e Alain Ducasse, reuniram-se com outros cozinheiros famosos, todos estrelados três vezes pelo guia Michelin, para defender a cozinha francesa." O comunicado falava em produtos da terra, cozinha de mãe e de avó, tradições de técnicas culinárias e mais ou menos decretava parâmetros para a verdadeira cozinha francesa, que deveria brilhar pela simplicidade e buscar inspiração na memória.
Foi um deus-nos-acuda. Chefs são uma raça que se ofende à toa. Uns achavam a proposta malformulada, outros se sentiram apunhalados pelas costas (Pierre Gagnaire e Marc Veyrat). Imagino que Robuchon e Ducasse estariam se insurgindo contra os maus cozinheiros, mas a confusão estava armada. Robuchon se explica, lamenta o cisma, mas não renega o conteúdo do manifesto.
Aposenta-se ainda jovem da profissão de restaurateur. Faz consultorias e brilha na TV. Eu, cá por mim, contento-me com sua saladinha de ervas, cerefólio, sálvia, estragão, manjericão, manjerona, salsa, hortelã e mais algumas verduras cortadas em pedaços menores. Sem esquecer as trufas. E seu purê visguento. Só eles já valeriam todo o banzé de uma vida.

ninahort@uol.com.br



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