São Paulo, sábado, 20 de junho de 2009
![]() |
![]() |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RODAPÉ LITERÁRIO A vida em desordem alfabética
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE COLUNISTA DA FOLHA "ESCREVO DE costas para a família/ defronte do espelho/ que a reflete, e a mim, sua extensão/ e consequência": os versos do poema "Pelo Retrovisor" bem poderiam servir de epígrafe a "Lar (2004-2009)", coletânea do poeta carioca Armando Freitas Filho recém-lançada pela Companhia das Letras, sucedendo a "Raro Mar (2002-2006)". Eles resumem e encenam, na imagem sintética da escrita solitária, os elementos essenciais que definem o estado atual e a história de seu "escritório poético", correção de rumo -pessoal, lúcida e retorcida- da geometria cabralina e da oficina irritada drummondiana, moldadas pela experiência contemporânea e pela preocupação persistente com o tempo. Em suas três seções, "Primeira Série"", "Formação" e "Numeral", a coletânea é antes de tudo "autobiografia de uma poética", como em breve, mas ótimo, prefácio o qualifica Vagner Camilo, e não mera sucessão de instantâneos alumbrados que buscassem recompor, em conjunto, o pano de fundo exterior, perdido na memória, da experiência individual. No jogo de cena velazqueano do poema citado, aquilo que o gesto firme de dar as costas nega -as amarras da tradição, o pai, a origem-, o espelho devolve confundido a própria imagem do sujeito lírico, inscrito tanto na materialidade do corpo quanto nas vozes de seus fantasmas pessoais, dos quais busca escapar pela palavra inquieta, poeta reflexivo e dividido que é. Nesta cena originária do autor, revela-se mais uma vez, indissolúvel, a unidade do tenso par central da obra de Armando Freitas Filho, poesia/ vida, em grau de obsessão que ultrapassa em muito a marca geracional. Assim, "Primeira Série" e "Formação" aludem ao aprendizado primeiro, escolar e doméstico, do mundo, torcido pelo gozo e remordimento, na infância e na juventude, mas não deixam de anunciar a descoberta da escrita, de outra família em que Drummond, Cabral, Gullar, Bandeira, figuram como os pais a matar. Forma-se o indivíduo e forja-se o poeta, no mesmo movimento não pacificado: a mãe sobrevive na voz gravada, a tortura anônima do aluno insatisfeito no protesto verbal, escavado a estilete na indiferença da carteira. São figurações concretas, portanto, de um embate em pleno vigor na maturidade do poeta, primeiros passos de uma série que não se encerra, motocontínuo. Fechando a coletânea, "Numeral", um conjunto de poemas sem título e encadeados unicamente pela ordem numérica crescente, na verdade o abre, para desdobramentos futuros e para sua origem passada, atenta à tarefa exigente de "escrever a partir da coreografia/ difícil imposta pelo pensamento/ do corpo", limite material inelutável à angústia do tempo. LAR (2004-2009) Autor: Armando Freitas Filho Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 34 (134 págs.) Avaliação: ótimo Texto Anterior: Crítica/"Flores": Contos tiram leitor da zona de conforto Próximo Texto: Vitrine Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |