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O DIÁRIO DO MITO
Saiba em conversas exclusivas, como foi o cotidiano da turnê européia de João Gilberto
Carol Quintanilha/Folha Imagem
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O artista João Gilberto durante show no Barbican, em Londres, que ele considerou o melhor da turnê européia, na qual foi pontual e recebeu elogios da crítica |
Folha acompanha o inventor da bossa nova no dia-a-dia dos shows em Barcelona e Londres
A VIAGEM DE JOÃO
MARIO SERGIO CONTI
ENVIADO ESPECIAL A LONDRES E BARCELONA
Quinta-feira, 6 de julho
"Crítica de show no Brasil é assim. O sujeito senta e escreve:
"Maria Bethânia entrou no palco
como ela gosta, descalça. Maria
Bethânia estava com muito axé.
Maria Bethânia cantou "Carcará",
"Cocoró", "Cucuru". Maria Bethânia cantou e encantou". Quando é
comigo, eles escrevem: "João Gilberto reclamou do som. João Gilberto cantou de novo "O Pato" e
"Chega de Saudade". O show só
engrenou do meio para o fim,
quando João Gilberto engatou
uma quarta.'"
O artista João Gilberto Prado
Pereira de Oliveira, 69, baiano de
Juazeiro, está ao telefone. Ele comenta a repercussão no Brasil de
seu show no mês anterior no Carnegie Hall, em Nova York.
Ele lembra os seus primeiros
shows em Nova York, no final de
1962, que o projetaram internacionalmente. O cantor, violonista,
compositor e inventor da bossa
nova estabeleceu-se então nos Estados Unidos, mudou-se para o
México, passou temporadas na
França e na Itália e só voltou ao
Brasil 18 anos depois. Desde 1980
ele mora no Rio de Janeiro.
O artista convida o interlocutor
a acompanhá-lo numa turnê pela
Europa. Serão dois shows em Barcelona e um em Londres. As passagens aéreas e os hotéis ficarão
por conta dos produtores. João
Gilberto concorda com que a Folha faça uma reportagem sobre a
turnê.
Sexta-feira, 7 de julho
O artista está novamente ao telefone. Conta que o inchaço nas
mãos, que surgiu logo depois do
concerto em Nova York, está diminuindo. Está tomando Vioxx,
um antiinflamatório que o hematologista Antonio Campos de Mello lhe receitou, também pelo telefone.
João Gilberto sai pouquíssimo
de casa. Ele mora sozinho no oitavo andar de um apartamento alugado no Leblon, numa rua transversal à praia. Fica a maior parte
do tempo de pijama e chinelos.
Ou de calça azul-marinho e camisa branca de manga comprida.
Não abre a janela. Nem as cortinas. Não tem aparelho de som.
Nunca houve CDs. Nem os seus.
Passa os dias cantando e tocando.
Ou conversando com amigos pelo telefone. Gosta de assistir telejornais, lutas de boxe, campeonatos de luta livre e, mais que tudo,
jogos da seleção brasileira.
Às vezes convida amigos para
jantar. É um anfitrião caloroso e
educado. Encomenda a comida
em restaurantes das redondezas.
Conversa, conta casos, comenta
notícias recentes, brinca, imita
pessoas, canta e toca violão para
os convidados até o amanhecer.
Sabe de cor centenas de músicas.
Nunca gravou ou cantou em público a maior parte delas.
Sábado, 8 de julho
O artista embarca à noite no Rio
e troca de avião em São Paulo.
Carrega um saco plástico com
uma garrafa de água mineral sem
gás. "Como é impossível conseguir água sem gelo num avião, venho equipado", explica. Ele fica
na primeira classe com Maria do
Céu Harris, 36, portuguesa nascida em Moçambique, sua namorada há 16 anos. Na classe econômica vão dr. Campos, um sobrinho
de João Gilberto, Pequinho, e
Moacyr Octavio Castilho, conhecido nos meios musicais como
Octavio Terceiro.
Domingo, 9 de julho
O avião aterrissa no aeroporto
de Madri às 14h. A conexão para
Barcelona só sai às 18h. O artista
aponta a semelhança das pessoas
que passam pela sua frente com
personagens da vida nacional:
"Olha o juiz Lalau, que vive clandestino na Espanha"; "Lá vai o
Leonardo Boff com sua barbona
branca"; "Vamos ali entrevistar o
Aloízio Mercadante?".
Passa uma idosa com uma
criança. Passa uma outra senhora
com uma menina. João Gilberto
aponta para elas e diz, sério: "Que
bom que as avós vivem bastante
na Espanha; lá vai a avó, lá vai a
neta, lá vai a vida".
Os monitores do aeroporto informam que o vôo para Barcelona
foi adiado para às 19h. Depois, para as 20h. Quando o vôo é postergado para às 22h, Pequinho toma
a iniciativa de tentar transferir os
bilhetes para o da ponte aérea Madri-Barcelona, cujos vôos saem de
meia em meia hora. Será preciso
pagar US$ 100 a mais por passagem. Pequinho decide fazer a troca e depois cobrar a diferença dos
produtores do show em Barcelona.
"Por uns míseros dólares, temos
de enfrentar essa confusão, todo
esse estresse", comenta Pequinho.
"O tio João já era para estar em
Barcelona, descansando, e fica
aqui pagando esse mico. Depois,
cansado, ele não faz o teste prévio
no teatro e, na hora do show, reclama do som. Aí, fica com fama
de temperamental. Mas as pessoas não sabem o que aconteceu
antes."
O artista entra no avião às 20h.
Novo atraso. Com o ar-condicionado do avião desligado e a temperatura acima de 30, os passageiros suam e se irritam. Às
20h30, João Gilberto diz ao sobrinho: "Dá minha passagem e o
passaporte. Se esse avião não sair
em dez minutos, saio, vou para
um hotel e volto amanhã para o
Brasil". Cinco minutos depois as
portas são fechadas e o avião se
encaminha para a cabeceira da
pista.
Passava das 22h quando o avião
aterrissou em Barcelona. Há 24
horas o artista saíra de seu apartamento no Rio. Ele era aguardado
por Alfonso Sitjá e Alfredo Lorenzo, os empresários espanhóis que
organizaram os shows, investindo
mais de US$ 100 mil. João Gilberto os cumprimenta e segue direto
para o carro que o levou ao hotel
Majestic.
Na sua suíte, com quarto, sala e
banheiro, finalmente pode sentar
numa poltrona. Fala aos empresários em portunhol: "Quiero
combinar com usteds para que
esto no se repita. Fueram horas y
horas de aeroporto. Toda mi
energia se fué. La energia que usaria para cantar para Barcelona. Y
hay un otro problema: pela passagem que usteds nos enviaram,
después del show em Londres teremos de retornar a Barcelona, y
entonces vuelver a Madri, y de lá
para o Brasil. Es un absurdo. Eso
precisa cambiar".
Os empresários dizem que o
vôo de conexão saiu às 18h de Madri, conforme o previsto. Tanto é
assim, garantem, que as malas do
artista já estavam no aeroporto de
Barcelona, onde Pequinho as estava resgatando. Insinuam, assim,
que a responsabilidade pelo atraso era dos brasileiros que, tontos,
perderam o avião em Madri. Os
empresários se comprometem a
mudar as passagens, de maneira
que a trupe volte direto de Londres para o Brasil.
Eles saem e João Gilberto lembra de testar a cama de casal da
suíte. Na lista de pedidos que enviara do Brasil, estipulara que precisava de um colchão duro, ortopédico. Os colchões comuns lhe
dão dor nas costas, fazendo com
que acorde uma hora depois de
dormir. Não deu outra: era um
colchão normal. Octavio Terceiro
liga para a gerência e é informado
que não existem colchões ortopédicos no hotel. Um colchão é tirado da cama e colocado no chão,
onde o artista tentará dormir.
A explicação dos empresários
não correspondia aos fatos: o vôo
original só chegou de Madri em
Barcelona depois da uma da manhã, quando Pequinho pôde recuperar as bagagens. Também
não alteraram o vôo de retorno ao
Brasil. E só pagaram a diferença
da ponte aérea de Barcelona depois de muita insistência.
Segunda-feira, 10 de julho
Às 10h, o artista tentou falar
com Pedro Bloch, no Rio, mas
ninguém atendeu o telefone. Queria saber do médico se podia tomar, junto com o Vioxx, um outro antiinflamatório e analgésico,
o Parenzyme. "O Parenzyme é
bom para as minhas cordas vocais", explica, pára um pouco e
completa: "Adoro remédios, eles
ficam trabalhando bem quietinhos dentro do corpo e você nem
vê".
O artista cortou o cabelo à tarde,
na suíte. Na sexta-feira anterior, o
barbeiro, José, havia cortado o cabelo do rei Juan Carlos, seu cliente
há 20 anos, pouco antes do soberano espanhol viajar em missão
oficial para o Brasil. José recomendou que tirasse os fios brancos das sobrancelhas, que, segundo ele, envelhecem mais uma pessoa do que barba ou cabelos brancos. "Mas não vai doer?", perguntou João Gilberto, que lhe deu
US$ 100 de gorjeta.
"Não, US$ 100 não é muito", explica o artista ao sobrinho. "Afinal, ele é o barbeiro do rei. Só aceitei cortar com o José porque sou o
rei da bossa nova."
Telefona para o quarto do dr.
Campos. "Campinhos, venha cá.
Cortei o cabelo. Com o barbeiro
de Sevilha. Todo mundo cortou.
Não te chamei porque você não
tem esse problema", disse ao médico, que é careca.
Dr. Campos entra na suíte pouco depois. Está de camisa pólo
vermelho berrante. "Campinhos,
saia com essa camisa na rua: "los
toros" vão correr atrás de você",
alerta. O médico examina as mãos
do artista e o tranquiliza: apesar
de ainda doerem um pouco, elas
estarão perfeitas para o show no
dia seguinte.
O artista, que estava quase há
um mês sem tocar, pega o violão e
ensaia algumas músicas. Octavio
Terceiro vai anotando as que João
Gilberto pretende cantar no concerto. O artista fica na dúvida se
tocará "Um Abraço no Bonfá",
música instrumental de sua autoria. ""Abraço" é complicada", diz.
"Precisaria estar com as mãos
perfeitas. Gostaria de tocá-la porque aqui é a terra das cordas: Casals, Segovia, Paco de Lucía."
A conversa envereda para o tema poesia. João Gilberto cita dois
trechos de Carlos Drummond de
Andrade, para ele o maior entre
os maiores artistas brasileiros. O
primeiro está em "A Luís Maurício, Infante", que o poeta fez para
seu neto e fala dos animais enjaulados no zoológico de Buenos Aires:
"Seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos./Inconformados e prisioneiros, em
Palermo, eles procuram o outro
lado,/E na sua faminta inquietação algo se liberta da jaula e seu
quadrado."
O artista faz um comentário
(""Seja humilde tua valentia" é
uma lição de vida") e declama o final de "A Morte do Leiteiro", o
trecho no qual o sangue e o leite se
misturam no amanhecer e formam "um terceiro tom, a que
chamamos aurora".
O papo deu outra volta e caiu
nos Estados Unidos. "Os americanos são fogo", diz o artista. Conta
que uma vez foi ao oculista na
América. Gostava de jogar pingue-pongue, mas, nos últimos
tempos, não enxergava a bolinha
direito. O médico fez alguns testes
visuais e decretou: "As figuras que
o senhor está vendo são do tamanho de uma bola de pingue-pongue". O artista lhe disse: "Mas no
pingue-pongue a bola está sempre em movimento, e essas figuras do teste estão paradas".
João Gilberto prossegue: "Pra
que eu fui falar? Ao perceber, não
digo um pouco, mas uma possibilidade de inteligência, o médico
fechou a cara, como se dissesse
"Ah, é?". Continuou os testes e me
botou um raio de luz no olho.
Doeu muito. Foi um instante, mas
doeu demais e me marcou para
sempre: Nunca mais foi o mesmo".
E continua, falando de política:
"Os americanos perceberam que
o Brasil estava mudando no final
dos anos 50 e no começo dos 60.
Havia Juscelino. Havia a bossa
nova, que estava tomando o mundo. Havia uma porção de coisas
acontecendo no Brasil. Ainda não
havia um povo consciente de si
mesmo, mas havia indivíduos:
havia um povo em formação. E o
que os americanos fizeram? Fizeram com que fosse dado um golpe
militar e viesse a ditadura. Vinte
anos depois, o Brasil estava todo
escangalhado e ainda não se recuperou."
O artista pede o almoço pelo telefone ao serviço de quarto. Confabula longamente com o atendente. Consegue com que ele tire
o creme de leite da sopa de lagosta. Pede também um peixe grelhado. Quem traz a comida é Joaquim, um catalão gordo e alegre
que é tratado com alta distinção.
A regra é essa: quanto mais humilde a pessoa, quanto mais pobre, com mais educação e gentileza o artista o tratará.
Depois de comer com gosto,
João Gilberto informa aos amigos
que irá dar uma dormidinha. "No
olvidem que en España la siesta es
obrigatória". Pequinho e Octavio
Terceiro saem para conferir o
som do teatro Grec, onde será o
show. Voltam à noite e informam
que as caixas de som são da marca
pedida e os microfones estão em
ordem. Os quase 4.000 ingressos
para as duas apresentações foram
vendidos, a R$ 70 cada um.
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