São Paulo, quinta-feira, 20 de julho de 2000


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O DIÁRIO DO MITO

Saiba em conversas exclusivas, como foi o cotidiano da turnê européia de João Gilberto
Carol Quintanilha/Folha Imagem
O artista João Gilberto durante show no Barbican, em Londres, que ele considerou o melhor da turnê européia, na qual foi pontual e recebeu elogios da crítica


Folha acompanha o inventor da bossa nova no dia-a-dia dos shows em Barcelona e Londres
A VIAGEM DE JOÃO

MARIO SERGIO CONTI
ENVIADO ESPECIAL A LONDRES E BARCELONA

Quinta-feira, 6 de julho
"Crítica de show no Brasil é assim. O sujeito senta e escreve: "Maria Bethânia entrou no palco como ela gosta, descalça. Maria Bethânia estava com muito axé. Maria Bethânia cantou "Carcará", "Cocoró", "Cucuru". Maria Bethânia cantou e encantou". Quando é comigo, eles escrevem: "João Gilberto reclamou do som. João Gilberto cantou de novo "O Pato" e "Chega de Saudade". O show só engrenou do meio para o fim, quando João Gilberto engatou uma quarta.'"
O artista João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, 69, baiano de Juazeiro, está ao telefone. Ele comenta a repercussão no Brasil de seu show no mês anterior no Carnegie Hall, em Nova York.
Ele lembra os seus primeiros shows em Nova York, no final de 1962, que o projetaram internacionalmente. O cantor, violonista, compositor e inventor da bossa nova estabeleceu-se então nos Estados Unidos, mudou-se para o México, passou temporadas na França e na Itália e só voltou ao Brasil 18 anos depois. Desde 1980 ele mora no Rio de Janeiro.
O artista convida o interlocutor a acompanhá-lo numa turnê pela Europa. Serão dois shows em Barcelona e um em Londres. As passagens aéreas e os hotéis ficarão por conta dos produtores. João Gilberto concorda com que a Folha faça uma reportagem sobre a turnê.

Sexta-feira, 7 de julho
O artista está novamente ao telefone. Conta que o inchaço nas mãos, que surgiu logo depois do concerto em Nova York, está diminuindo. Está tomando Vioxx, um antiinflamatório que o hematologista Antonio Campos de Mello lhe receitou, também pelo telefone.
João Gilberto sai pouquíssimo de casa. Ele mora sozinho no oitavo andar de um apartamento alugado no Leblon, numa rua transversal à praia. Fica a maior parte do tempo de pijama e chinelos. Ou de calça azul-marinho e camisa branca de manga comprida. Não abre a janela. Nem as cortinas. Não tem aparelho de som. Nunca houve CDs. Nem os seus. Passa os dias cantando e tocando. Ou conversando com amigos pelo telefone. Gosta de assistir telejornais, lutas de boxe, campeonatos de luta livre e, mais que tudo, jogos da seleção brasileira.
Às vezes convida amigos para jantar. É um anfitrião caloroso e educado. Encomenda a comida em restaurantes das redondezas. Conversa, conta casos, comenta notícias recentes, brinca, imita pessoas, canta e toca violão para os convidados até o amanhecer. Sabe de cor centenas de músicas. Nunca gravou ou cantou em público a maior parte delas.

Sábado, 8 de julho
O artista embarca à noite no Rio e troca de avião em São Paulo. Carrega um saco plástico com uma garrafa de água mineral sem gás. "Como é impossível conseguir água sem gelo num avião, venho equipado", explica. Ele fica na primeira classe com Maria do Céu Harris, 36, portuguesa nascida em Moçambique, sua namorada há 16 anos. Na classe econômica vão dr. Campos, um sobrinho de João Gilberto, Pequinho, e Moacyr Octavio Castilho, conhecido nos meios musicais como Octavio Terceiro.

Domingo, 9 de julho
O avião aterrissa no aeroporto de Madri às 14h. A conexão para Barcelona só sai às 18h. O artista aponta a semelhança das pessoas que passam pela sua frente com personagens da vida nacional: "Olha o juiz Lalau, que vive clandestino na Espanha"; "Lá vai o Leonardo Boff com sua barbona branca"; "Vamos ali entrevistar o Aloízio Mercadante?".
Passa uma idosa com uma criança. Passa uma outra senhora com uma menina. João Gilberto aponta para elas e diz, sério: "Que bom que as avós vivem bastante na Espanha; lá vai a avó, lá vai a neta, lá vai a vida".
Os monitores do aeroporto informam que o vôo para Barcelona foi adiado para às 19h. Depois, para as 20h. Quando o vôo é postergado para às 22h, Pequinho toma a iniciativa de tentar transferir os bilhetes para o da ponte aérea Madri-Barcelona, cujos vôos saem de meia em meia hora. Será preciso pagar US$ 100 a mais por passagem. Pequinho decide fazer a troca e depois cobrar a diferença dos produtores do show em Barcelona.
"Por uns míseros dólares, temos de enfrentar essa confusão, todo esse estresse", comenta Pequinho. "O tio João já era para estar em Barcelona, descansando, e fica aqui pagando esse mico. Depois, cansado, ele não faz o teste prévio no teatro e, na hora do show, reclama do som. Aí, fica com fama de temperamental. Mas as pessoas não sabem o que aconteceu antes."
O artista entra no avião às 20h. Novo atraso. Com o ar-condicionado do avião desligado e a temperatura acima de 30, os passageiros suam e se irritam. Às 20h30, João Gilberto diz ao sobrinho: "Dá minha passagem e o passaporte. Se esse avião não sair em dez minutos, saio, vou para um hotel e volto amanhã para o Brasil". Cinco minutos depois as portas são fechadas e o avião se encaminha para a cabeceira da pista.
Passava das 22h quando o avião aterrissou em Barcelona. Há 24 horas o artista saíra de seu apartamento no Rio. Ele era aguardado por Alfonso Sitjá e Alfredo Lorenzo, os empresários espanhóis que organizaram os shows, investindo mais de US$ 100 mil. João Gilberto os cumprimenta e segue direto para o carro que o levou ao hotel Majestic.
Na sua suíte, com quarto, sala e banheiro, finalmente pode sentar numa poltrona. Fala aos empresários em portunhol: "Quiero combinar com usteds para que esto no se repita. Fueram horas y horas de aeroporto. Toda mi energia se fué. La energia que usaria para cantar para Barcelona. Y hay un otro problema: pela passagem que usteds nos enviaram, después del show em Londres teremos de retornar a Barcelona, y entonces vuelver a Madri, y de lá para o Brasil. Es un absurdo. Eso precisa cambiar".
Os empresários dizem que o vôo de conexão saiu às 18h de Madri, conforme o previsto. Tanto é assim, garantem, que as malas do artista já estavam no aeroporto de Barcelona, onde Pequinho as estava resgatando. Insinuam, assim, que a responsabilidade pelo atraso era dos brasileiros que, tontos, perderam o avião em Madri. Os empresários se comprometem a mudar as passagens, de maneira que a trupe volte direto de Londres para o Brasil.
Eles saem e João Gilberto lembra de testar a cama de casal da suíte. Na lista de pedidos que enviara do Brasil, estipulara que precisava de um colchão duro, ortopédico. Os colchões comuns lhe dão dor nas costas, fazendo com que acorde uma hora depois de dormir. Não deu outra: era um colchão normal. Octavio Terceiro liga para a gerência e é informado que não existem colchões ortopédicos no hotel. Um colchão é tirado da cama e colocado no chão, onde o artista tentará dormir.
A explicação dos empresários não correspondia aos fatos: o vôo original só chegou de Madri em Barcelona depois da uma da manhã, quando Pequinho pôde recuperar as bagagens. Também não alteraram o vôo de retorno ao Brasil. E só pagaram a diferença da ponte aérea de Barcelona depois de muita insistência.

Segunda-feira, 10 de julho
Às 10h, o artista tentou falar com Pedro Bloch, no Rio, mas ninguém atendeu o telefone. Queria saber do médico se podia tomar, junto com o Vioxx, um outro antiinflamatório e analgésico, o Parenzyme. "O Parenzyme é bom para as minhas cordas vocais", explica, pára um pouco e completa: "Adoro remédios, eles ficam trabalhando bem quietinhos dentro do corpo e você nem vê".
O artista cortou o cabelo à tarde, na suíte. Na sexta-feira anterior, o barbeiro, José, havia cortado o cabelo do rei Juan Carlos, seu cliente há 20 anos, pouco antes do soberano espanhol viajar em missão oficial para o Brasil. José recomendou que tirasse os fios brancos das sobrancelhas, que, segundo ele, envelhecem mais uma pessoa do que barba ou cabelos brancos. "Mas não vai doer?", perguntou João Gilberto, que lhe deu US$ 100 de gorjeta.
"Não, US$ 100 não é muito", explica o artista ao sobrinho. "Afinal, ele é o barbeiro do rei. Só aceitei cortar com o José porque sou o rei da bossa nova."
Telefona para o quarto do dr. Campos. "Campinhos, venha cá. Cortei o cabelo. Com o barbeiro de Sevilha. Todo mundo cortou. Não te chamei porque você não tem esse problema", disse ao médico, que é careca.
Dr. Campos entra na suíte pouco depois. Está de camisa pólo vermelho berrante. "Campinhos, saia com essa camisa na rua: "los toros" vão correr atrás de você", alerta. O médico examina as mãos do artista e o tranquiliza: apesar de ainda doerem um pouco, elas estarão perfeitas para o show no dia seguinte.
O artista, que estava quase há um mês sem tocar, pega o violão e ensaia algumas músicas. Octavio Terceiro vai anotando as que João Gilberto pretende cantar no concerto. O artista fica na dúvida se tocará "Um Abraço no Bonfá", música instrumental de sua autoria. ""Abraço" é complicada", diz. "Precisaria estar com as mãos perfeitas. Gostaria de tocá-la porque aqui é a terra das cordas: Casals, Segovia, Paco de Lucía."
A conversa envereda para o tema poesia. João Gilberto cita dois trechos de Carlos Drummond de Andrade, para ele o maior entre os maiores artistas brasileiros. O primeiro está em "A Luís Maurício, Infante", que o poeta fez para seu neto e fala dos animais enjaulados no zoológico de Buenos Aires:
"Seja humilde tua valentia. Repara que há veludo nos ursos./Inconformados e prisioneiros, em Palermo, eles procuram o outro lado,/E na sua faminta inquietação algo se liberta da jaula e seu quadrado."
O artista faz um comentário (""Seja humilde tua valentia" é uma lição de vida") e declama o final de "A Morte do Leiteiro", o trecho no qual o sangue e o leite se misturam no amanhecer e formam "um terceiro tom, a que chamamos aurora".
O papo deu outra volta e caiu nos Estados Unidos. "Os americanos são fogo", diz o artista. Conta que uma vez foi ao oculista na América. Gostava de jogar pingue-pongue, mas, nos últimos tempos, não enxergava a bolinha direito. O médico fez alguns testes visuais e decretou: "As figuras que o senhor está vendo são do tamanho de uma bola de pingue-pongue". O artista lhe disse: "Mas no pingue-pongue a bola está sempre em movimento, e essas figuras do teste estão paradas".
João Gilberto prossegue: "Pra que eu fui falar? Ao perceber, não digo um pouco, mas uma possibilidade de inteligência, o médico fechou a cara, como se dissesse "Ah, é?". Continuou os testes e me botou um raio de luz no olho. Doeu muito. Foi um instante, mas doeu demais e me marcou para sempre: Nunca mais foi o mesmo".
E continua, falando de política: "Os americanos perceberam que o Brasil estava mudando no final dos anos 50 e no começo dos 60. Havia Juscelino. Havia a bossa nova, que estava tomando o mundo. Havia uma porção de coisas acontecendo no Brasil. Ainda não havia um povo consciente de si mesmo, mas havia indivíduos: havia um povo em formação. E o que os americanos fizeram? Fizeram com que fosse dado um golpe militar e viesse a ditadura. Vinte anos depois, o Brasil estava todo escangalhado e ainda não se recuperou."
O artista pede o almoço pelo telefone ao serviço de quarto. Confabula longamente com o atendente. Consegue com que ele tire o creme de leite da sopa de lagosta. Pede também um peixe grelhado. Quem traz a comida é Joaquim, um catalão gordo e alegre que é tratado com alta distinção. A regra é essa: quanto mais humilde a pessoa, quanto mais pobre, com mais educação e gentileza o artista o tratará.
Depois de comer com gosto, João Gilberto informa aos amigos que irá dar uma dormidinha. "No olvidem que en España la siesta es obrigatória". Pequinho e Octavio Terceiro saem para conferir o som do teatro Grec, onde será o show. Voltam à noite e informam que as caixas de som são da marca pedida e os microfones estão em ordem. Os quase 4.000 ingressos para as duas apresentações foram vendidos, a R$ 70 cada um.


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