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CONTARDO CALLIGARIS
A nova revolta: responsabilidade ilimitada
Angela Davis é um ícone da
militância comunista, feminista e negra dos anos 60 e 70.
Numa recente entrevista, ela
declarou: "Estou impressionada
com o trabalho que os jovens estão fazendo e me irrito com muitas pessoas de minha geração que
se consideram veteranos de lutas
passadas e que tendem a depreciar o trabalho dos jovens e contribuem para manter a imagem
dos anos 60 como a única era revolucionária".
Concordo com ela. A nostalgia
do ex-combatente serve para justificar cinismo e desistência.
É mais interessante olhar com
respeito para a babel de revoltas e
de esperanças que animaram as
ruas de Seattle e de Washington,
que promete muitas outras badernas pelo mundo afora.
Dos agricultores franceses ao
Greenpeace, os novos revoltados
têm ao menos um inimigo comum: as grandes corporações. O
projeto de um novo estatuto jurídico para as corporações está no
centro da pauta de vários grupos.
Parece um combate reformista
que não vai mudar nada, não é?
Mas, como sugere Angela Davis,
não vamos desconsiderar tão rapidamente o trabalho dos jovens.
Nesses últimos dias, as produtoras americanas de tabaco foram
condenadas por um júri popular
a pagar indenizações punitivas
de US$ 144,8 bilhões.
O júri nem se perguntou se os
fumantes que adoeceram são ou
não também responsáveis por
suas doenças. O que importou é
que as corporações sabiam que
seu produto era nocivo e produzia
dependência. Com isso, seguiam
caladas vendendo, promovendo e
lucrando.
Quando foi formulado o pedido
bilionário, as companhias afirmaram que, se fossem condenadas a pagar tal montante, iriam à
bancarrota. O júri não se inibiu.
Ao contrário, quis condenar as
companhias à morte, assim como
na Flórida (onde o processo aconteceu) seria condenado à morte
alguém que matasse 400 mil pessoas por ano durante 50 anos.
Claro, é provável que o apelo
acabe reduzindo substancialmente o montante. Mesmo assim,
a reação da Bolsa foi curiosa. As
ações da Philip Morris, da
R.J.Reynolds e de outras companhias caíram apenas um pouco.
Os acionistas não se indignaram
e não se assustaram. Como é possível?
É graças a uma lei feita justamente para que as pessoas possam ser pacifistas e comprar Raytheon ou Lockheed, ser verdes e
comprar Exxon. A lei diz e garante que, enquanto investidores,
nossa responsabilidade é limitada. Muito limitada.
Naturalmente, essa isenção de
responsabilidade civil e penal enferruja também nossos sentimentos morais. Se não somos responsáveis legalmente, por que nos
sentiríamos culpados?
De repente, como investidores,
somos outros sujeitos, além do
bem e do mal -alienados num
mundo abstrato onde só conta o
lucro.
Veja só: se você for dono de um
prédio, junto com outros proprietários, e se este prédio ruir matando um transeunte, você, junto
com seus sócios, será pessoalmente responsável por essa morte.
Provavelmente você também se
sentirá culpado, no mínimo triste.
Isso não acontece com os investimentos acionários. A Philip
Morris é condenada a pagar US$
73 bilhões aos fumantes da Flórida. Se ela for à falência, você perderá seus investimentos: seus R$
2.000 de ações da Philip Morris
(imaginemos) não valerão mais
nada.
Mas -mesmo no caso em que
os bens da corporação não alcancem- os fumantes e seus herdeiros não poderão exigir que seus
bens (apartamento, carro, lençóis
e bicicleta) sejam vendidos para
pagar os danos. Com isso, torna-se fácil investir em Philip Morris
sem sequer levantar a questão da
responsabilidade moral.
Os fundos de ações aperfeiçoam
o sistema: o pessoal investe e não
precisa saber no quê. Tudo graças
ao princípio da responsabilidade
limitada.
Pois bem, um dos projetos da
nova revolta anticorporativa
americana é este: abolir a responsabilidade limitada. Quem possui
ações deveria ser pessoalmente
responsável pelos atos das corporações nas quais investe.
Se essa mudança do estatuto de
responsabilidade do investidor
viesse a acontecer, seria certamente uma catástrofe para as
bolsas -uma crise econômica incontrolável.
Mas os efeitos sociais seriam interessantes. A responsabilidade limitada é uma licença para matar: hoje as corporações supõem,
com razão, que os investidores só
querem lucrar.
Mas, se estes fossem responsáveis civil e penalmente, as corporações se imporiam freios morais.
Pois, mesmo para lucrar, não se
arriscariam a fazer algo cujas
consequências afugentariam os
investidores.
Você pensa em comprar ações
da Petrobras. Ora, um júri popular poderia decidir que a conta da
poluição é mais alta do que a Petrobras pode pagar. Neste caso, os
bens dos acionistas seriam leiloados para limpar as praias da baía
de Guanabara ou do rio Iguaçu.
Você ainda quer comprar ações
da Petrobras?
Os pruridos dos investidores assustados imporiam, enfim, algum
tipo de controle democrático na
atividade de monstros que hoje
contam com nossas vidas mais do
que os governos eleitos.
Talvez Angela Davis tenha razão: esses novos revoltados são
mais radicais do que parecem.
P.S.: Quer ver um projeto de novo
estatuto jurídico das corporações?
Veja o da Alliance for Democracy
(www.afd-online.org).
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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