São Paulo, sábado, 20 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"DUAS TARDES"

Carrascoza explora a rotina em contos

MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA

Pequenos gestos, solidão, incapacidade de comunicação, melancolia e mundo vazio são os tons com que o paulista João Anzanello Carrascoza, 40, opacifica os personagens de "Duas Tardes", livro com dez contos lançado pela Boitempo Editorial.
"Literatura e propaganda são coisas não tão opostas, pois trabalham com a palavra. Em publicidade, respeita-se um padrão, em literatura, sou mais livre. Em ambas, luto para achar a palavra perfeita", afirma Carrascoza, que é publicitário e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.
"Uso a rapidez da propaganda para deixar o texto literário menos gorduroso e a literatura para não fazer propaganda convencional", diz o autor, que no primeiro livro, "Hotel Solidão" (Scritta, 1994), ganhou o 14º Concurso de Contos do Paraná.
Em seu currículo, há ainda prêmios como o Eça de Queiroz (2000), livros infanto-juvenis e participações em antologias.
"Duas Tardes" não é um livro de slogans, frases curtas, referências mercadológicas, mas de muita sensibilidade e sofisticação literária.
"Pardais" é um dos contos que simbolizam o vazio que há no comum. Um casal acaba de se mudar. Está cercado por caixas. "E agora?", suspira a mulher, assim que os homens da mudança partem. Ela não sabe por onde começar, enquanto o marido, exausto, se joga no sofá.
"Sua bússola parecia não funcionar naquele sobrado e, a esmo, ela andou pelos cômodos; tudo era tão seu, e nada a convidava a construir um mundo novo. Sentia-se como uma flor selvagem que, à procura de mãos delicadas que cuidassem de si, se vira transplantada brutalmente para uma estufa."
Algo havia quebrado dentro dela. O marido, tão próximo, tão longe. Pardais pousavam no telhado vizinho. Ela se pergunta: "O que vim fazer aqui?". Sai pelo quintal. Parece que vai embora. É um final em aberto.
Carrascoza escreve, entre outras coisas, sobre a angústia do pequeno, de desejar pouco e de ser torturado pela rotina, apesar de que em cada movimento sutil existe um destino transformado.
Uma criança ansiosa e brincalhona, à espera do pai, abre o livro em "O Menino e o Pião". O menino quer brincar de pião com o pai. Este, exausto, convive com a família como se esta fosse mais uma tarefa da burocracia da vida, com um outro pião girando dentro dele.
O autor trabalha com cuidado as palavras e constrói as narrativas com personagens comuns, mas fortes e exatos. Não os joga em grandes tramas, mas os empurra em ambientes carregados.
O que se pode tirar de sua obra é que há muita coisa insolúvel em torno do silêncio e da rotina, como no reencontro de irmãos, no conto "Duas Tardes", irmãos que não se viam há anos, e que, para cada um deles, aquela tarde em que estiveram juntos teve um significado.


Duas Tardes    
Autor: João Anzanello Carrascoza
Editora: Boitempo Editorial
Quanto: R$ 18 (109 págs.)



Texto Anterior: "A Taça de Ouro": Henry James mimetiza a percepção humana
Próximo Texto: Artes plásticas: Indicação de Hug instala controvérsia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.