São Paulo, quinta-feira, 20 de julho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Papa cabeça

Enquanto a Fifa aguarda, hoje, depoimento de Zidane, intelectuais discutem paralelos da cabeçada com obra de Camus

SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando Meursault, o protagonista do romance filosófico de Albert Camus, "O Estrangeiro" (1942), atira e mata um homem, sem razão aparente e debaixo de um sol escaldante, percebe que alterou o equilíbrio de uma "praia onde havia sido feliz" e que aquilo o levaria a bater, irremediavelmente, à "porta da desgraça".
Seria possível comparar essa passagem memorável da obra de Camus (1913-1960) com a explosão de cólera do jogador francês Zinedine Zidane na final da Copa? Seria a cabeçada que deu no italiano Materazzi, como os tiros de Meursault, um ato também irracional e aparentemente gratuito que, no caso de Zizou, colocava em risco uma trajetória gloriosa?
Evidentemente são situações diferentes (até porque uma delas é real, e a outra, uma imagem literária), mas, enquanto se espera um novo depoimento do jogador à Fifa, que deve acontecer hoje, tanto discussões filosóficas como esta estão abertas como brincadeiras rolam soltas na internet (o site www.youtube.com traz algumas delas).
Entre Zidane e Meursault há alguns paralelos possíveis. Em primeiro lugar, o fato de que as duas explosões de violência destruíram, num momento luminoso de suas vidas, uma narrativa até então coerente. Depois, nos dois casos, temos um julgamento público que pode terminar numa reparação, mas não necessariamente numa explicação racional sobre o que aconteceu. E, por fim, aí já no plano da mera curiosidade, tanto Camus como Zidane são de origem argelina.
Para o escritor Joca Reiners Terron, o jogador fez uma "paródia involuntária" de Meursault. "A cabeçada e a negação de um arrependimento posterior soaram como recomendação de lucidez no absurdo." Já para o colunista da Folha João Pereira Coutinho, "o que mais os aproxima é o fato de terem mostrado que nem todos os nossos comportamentos têm explicações civilizacionais".
Pesquisador da obra de Camus (e autor de "Albert Camus - Um Elogio do Ensaio"), Manuel da Costa Pinto lembra uma passagem de "O Homem Revoltado" (1951), em que o escritor argelino distingue os crimes de paixão dos crimes de lógica. "Os primeiros conservam sua excepcionalidade, enquanto os outros, ao advogarem sua necessidade, acabam virando regra. Zidane pertence ao primeiro caso. Preferiu ser fiel a si mesmo, mas, em nenhum momento, reivindicou uma razão abstrata que legitimasse o que fez. Reconheceu a culpa, mas afirmando que naquele momento -e só nele- a violência era imperativa", diz o também colunista da Folha.
Um outro paralelo possível está no sentimento de liberdade que ambos parecem ter atingido por meio de um ato violento e condenável. À espera de sua execução, ao final do livro, Meursault diz que está feliz e quer que os espectadores o recebam "com gritos de ódio".
"Camus fala da suprema liberdade do condenado à morte, da sensação de júbilo desencadeada pela quebra iminente dos vínculos com o mundo. Talvez Zidane também tenha tido o impulso de destruir aquele cenário, de mandar tudo às favas, de fazer de sua última partida uma ruptura com o mundo", diz Costa Pinto.
Já o psicanalista Tales Ab'Sáber acha que as duas passagens são comparáveis só por "dizerem respeito a todos esses gestos que parecem não ter um contexto", mas concorda que a atitude de Zidane guarda uma grande complexidade com relação ao comportamento humano. "Quando aconteceu, o mundo inteiro percebeu que estava diante de uma coisa significativa." A crítica literária Leyla Perrone-Moysés também não concorda muito com a comparação. "O paralelo pode ser interessante e é bom que apareça porque esse episódio merece debate. Nos dois casos houve um surto. Mas são coisas diferentes. Meursault sente o mal-estar do mundo e não reage. Zidane estava reagindo."


Texto Anterior: Manaus estréia seu 1º festival de jazz
Próximo Texto: Música: Chico Buarque começa turnê de "Carioca" em 30 de agosto
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.