|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Papa cabeça
Enquanto a Fifa aguarda, hoje, depoimento de Zidane, intelectuais discutem paralelos da cabeçada com obra de Camus
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
Quando Meursault, o protagonista do romance filosófico
de Albert Camus, "O Estrangeiro" (1942), atira e mata um homem, sem razão aparente e debaixo de um sol escaldante,
percebe que alterou o equilíbrio de uma "praia onde havia
sido feliz" e que aquilo o levaria
a bater, irremediavelmente, à
"porta da desgraça".
Seria possível comparar essa
passagem memorável da obra
de Camus (1913-1960) com a
explosão de cólera do jogador
francês Zinedine Zidane na final da Copa? Seria a cabeçada
que deu no italiano Materazzi,
como os tiros de Meursault, um
ato também irracional e aparentemente gratuito que, no
caso de Zizou, colocava em risco uma trajetória gloriosa?
Evidentemente são situações
diferentes (até porque uma delas é real, e a outra, uma imagem literária), mas, enquanto
se espera um novo depoimento
do jogador à Fifa, que deve
acontecer hoje, tanto discussões filosóficas como esta estão
abertas como brincadeiras rolam soltas na internet (o site
www.youtube.com traz algumas delas).
Entre Zidane e Meursault há
alguns paralelos possíveis. Em
primeiro lugar, o fato de que as
duas explosões de violência
destruíram, num momento luminoso de suas vidas, uma narrativa até então coerente. Depois, nos dois casos, temos um
julgamento público que pode
terminar numa reparação, mas
não necessariamente numa explicação racional sobre o que
aconteceu. E, por fim, aí já no
plano da mera curiosidade, tanto Camus como Zidane são de
origem argelina.
Para o escritor Joca Reiners
Terron, o jogador fez uma "paródia involuntária" de Meursault. "A cabeçada e a negação
de um arrependimento posterior soaram como recomendação de lucidez no absurdo." Já
para o colunista da Folha João
Pereira Coutinho, "o que mais
os aproxima é o fato de terem
mostrado que nem todos os
nossos comportamentos têm
explicações civilizacionais".
Pesquisador da obra de Camus (e autor de "Albert Camus
- Um Elogio do Ensaio"), Manuel da Costa Pinto lembra
uma passagem de "O Homem
Revoltado" (1951), em que o escritor argelino distingue os crimes de paixão dos crimes de lógica. "Os primeiros conservam
sua excepcionalidade, enquanto os outros, ao advogarem sua
necessidade, acabam virando
regra. Zidane pertence ao primeiro caso. Preferiu ser fiel a si
mesmo, mas, em nenhum momento, reivindicou uma razão
abstrata que legitimasse o que
fez. Reconheceu a culpa, mas
afirmando que naquele momento -e só nele- a violência
era imperativa", diz o também
colunista da Folha.
Um outro paralelo possível
está no sentimento de liberdade que ambos parecem ter
atingido por meio de um ato
violento e condenável. À espera
de sua execução, ao final do livro, Meursault diz que está feliz e quer que os espectadores o
recebam "com gritos de ódio".
"Camus fala da suprema liberdade do condenado à morte, da sensação de júbilo desencadeada pela quebra iminente
dos vínculos com o mundo.
Talvez Zidane também tenha
tido o impulso de destruir
aquele cenário, de mandar tudo às favas, de fazer de sua última partida uma ruptura com o
mundo", diz Costa Pinto.
Já o psicanalista Tales Ab'Sáber acha que as duas passagens
são comparáveis só por "dizerem respeito a todos esses gestos que parecem não ter um
contexto", mas concorda que a
atitude de Zidane guarda uma
grande complexidade com relação ao comportamento humano. "Quando aconteceu, o
mundo inteiro percebeu que
estava diante de uma coisa significativa." A crítica literária
Leyla Perrone-Moysés também não concorda muito com a
comparação. "O paralelo pode
ser interessante e é bom que
apareça porque esse episódio
merece debate. Nos dois casos
houve um surto. Mas são coisas
diferentes. Meursault sente o
mal-estar do mundo e não reage. Zidane estava reagindo."
Texto Anterior: Manaus estréia seu 1º festival de jazz Próximo Texto: Música: Chico Buarque começa turnê de "Carioca" em 30 de agosto Índice
|