São Paulo, segunda, 20 de julho de 1998

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CRÍTICA
Artaud busca "a pele das coisas" no cinema

da Redação

"Este roteiro procura a verdade sombria do espírito, em imagens saídas unicamente de si mesmas, e que não tiram seu sentido da situação em que se desenvolvem, mas de uma espécie de necessidade interna."
Com essas palavras na apresentação de "La Coquille et le Clergyman" (A Concha e o Clérigo), o poeta Antonin Artaud define não só o texto que escrevera, como boa parte das dúvidas em torno do "cinema puro" dos anos 20.
As "imagens saídas de si mesmas" propostas por Artaud opunham-se tanto ao filme de intriga, com fundo psicológico, em que "toda a emoção e todo o humor repousam unicamente sobre o texto", como à "abstração visual puramente linear". Nesse segundo item, está claro que Artaud referia-se a trabalhos como os de Man Ray e Fernand Léger.
Ao contrário de Man Ray ("Le Retour à la Raison", "L'Etoile De Mer" e "Emak-Bakia"), Marcel Duchamp ("Anémic Cinéma") e Léger ("La Ballet Mécanique"), e mesmo ao René Clair de "Entr'acte", a aspiração de Artaud era chegar à "pele humana das coisas, a derme da realidade".
As experiências de Man Ray tendem a, antes de mais nada, dar movimento ao tipo de trabalho que fazia com a fotografia e não raro lembram as abstrações do canadense Norman McLaren. Assim como os trabalhos de Léger, Duchamp e Clair agora lançados, esses jogos de linhas e luzes de Man Ray podem ser definidos como jogos de exaltação da matéria, que colocam em relevo o insólito dos objetos (e da vida cotidiana).
Tratava-se, assim, de ampliar o campo da percepção. O que realmente aconteceu, já que o conjunto dessa vanguarda pode ser aferido pelos efeitos de distorção, fragmentação, câmera lenta, câmera rápida, fusões inesperadas, câmeras de ponta-cabeça.
Enfim, um experimentalismo totalmente solto, sem maior compromisso com a coerência do material. O "todo" era o que resultava no fim.
"A Concha e o Padre", ao contrário, está mais próxima do Buñuel de "L'Âge d'Or". Também aqui a sexualidade é o aspecto central, embora em Buñuel o desejo seja objeto de exaltação, enquanto em Artaud ele é angustiado e controverso.
"A Concha e o Padre" foi inteiramente desaprovado por Artaud. Segundo consta, ele gostaria de ter participado da realização. Dullac barrou suas pretensões.
O fato é que o filme -nada desprezível, aliás, e com momentos antológicos, como o da cabeça seccionada- tem menos impacto do que Artaud pretendia.
É verdade que ele não pretendia pouco: imagens que "nascem, deduzem-se umas das outras, impõem uma síntese mais penetrante do que qualquer abstração".
Em todo caso, pode-se aplicar ao filme de Dullac o mesmo benefício da dúvida que merece o Teatro da Crueldade teorizado por Artaud: até que ponto suas idéias têm muito mais vida no papel do que é possível imprimir a um espetáculo de teatro ou a um filme?
(IA)



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