São Paulo, terça-feira, 20 de agosto de 2002

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Outras águas no Rio

Divulgação
Jovens do Complexo da Maré que integram o espetáculo



Ivaldo Bertazzo prepara "Dança das Marés", com roteiro de Drauzio Varella e participação de crianças de favela carioca


INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

Adolescência: enigmas do corpo e da cabeça, dificuldades com a família e com a nossa modernidade. Os enigmas existem desde sempre e não mudaram muito de natureza ou tamanho; já as dificuldades tendem a ser maiores quando a família, além de moderna, é brasileira e desfavorecida. "Dança das Marés" não pede bula, mas reflexões assim podem enriquecer a interpretação deste terceiro trabalho do coreógrafo Ivaldo Bertazzo com os adolescentes do Complexo da Maré, que estréia em setembro no Rio e segue depois para São Paulo.
O roteiro é de Drauzio Varella, colunista da Folha, baseado no depoimento dos próprios integrantes do grupo. Em cena, além de dançar, os meninos falam: 1) da sexualidade, e 2) dos problemas que enfrentam no dia-a-dia.
Segundo Bertazzo, trata-se de um espetáculo "educativo e transformador para o corpo e para a mente deles. Não há diferença entre uma criança da classe média e do Complexo da Maré. Mas uma criança privilegiada tem um ensino de maior qualidade, que talvez eles não tenham. Você refina um ser humano para aumentar seus desejos e seus anseios: é isso que permite desenvolvimento".
Ao todo, são 62 adolescentes, entre 11 e 20 anos, muitos deles no grupo desde o início do projeto. Ensaiam sete horas aos sábados e domingos e quatro durante a semana -10 meses por ano. Recebem salário de R$ 200 por isso. Patrocinado pela Petrobras (R$ 2,3 milhões) e pelo Sesc (infra-estrutura, estimada em R$ 400 mil), o trabalho tem como parceiro o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (Ceasm).
O foco é outro, mas esse projeto, a seu modo, dá continuidade aos processos de criação que Bertazzo vem desenvolvendo desde a década de 70 com os "cidadãos-dançantes". A intenção é preparar os meninos para um cotidiano digno, e o caminho até lá passa pelo empenho de artista. "O objetivo", diz Bertazzo, "é conquistar uma linguagem de palco refinada, o que exige muito rigor das crianças". Em outras palavras: fazer um espetáculo, com as exigências de uma obra coreográfica de nível profissional.
Bertazzo continua: "Os projetos culturais realizados em comunidades menos favorecidas exercem influência transformadora sobre o mundo particular de cada um dos participantes, seja em termos pedagógicos, seja sociais e psicológicos. Estimulam uma mudança de horizontes". Sem ilusões, nem sentimentalismos: "A vida deles não fica mais fácil, não. Por isso precisamos do trabalho de assistentes sociais, que vão à escola e às casas deles".
Do ponto de vista da dança, propriamente, a linguagem de Bertazzo assume, como há muito, influências da dança indiana, em que a subdivisão rítmica é crucial (algumas coreografias são da professora indiana de "kathak", Vaishali Trivedi). "Basicamente, o que trabalhamos são as matrizes do gesto humano. Esses padrões são reconstruídos pela repetição, reafirmando no sistema nervoso central cada pedaço de corpo."
A música também tem papel determinante. Como explica o coreógrafo, "os meninos aprendem uma coreografia cantando". E foi no ritmo da dança que o grupo mineiro Uakti compôs a trilha do espetáculo. A exploração do que está ao redor de nós para compor a dança tem paralelo na criação dos instrumentos, feitos de PVC e outros materiais. O Uakti estará em cena com os meninos, que participam ativamente em algumas músicas.
Cabe frisar que nem tudo vem deles, nem daí: para além dos ritmos que Bertazzo trabalhava com as crianças, o compositor Marco Antônio Guimarães deu-se liberdade para releituras de clássicos, como Mozart, Bach e Stravinski.
A estrutura oval do palco foi criada por Camila Fabrini: um anfiteatro, de paredes inclinadas, possibilitando a interação da dança com o espaço. É uma "encrenca boa", como diz Bertazzo. Há, ainda, um grande pêndulo em cena e diversos painéis de 10 metros quadrados, feitos pelos integrantes do grupo, orientados pelo artista Deneir de Souza Martins.
Mas... e a escolha do tema? Por que a adolescência, um tema tão geral, nesse contexto tão específico e tão carregado? "No adolescente, quanto maior a insegurança, mais prepotente e autoritário ele vira. Trabalhamos colocando a agressividade na expressão: na pintura, no gesto, na fala. Aprender a conter a energia, para que ela possa se modificar, é a conquista da nossa época."
Belas palavras de Bertazzo. Seria só isso, descoladas do que ele vem fazendo, paciente e arrojadamente. A julgar pelos ensaios, essa "Dança das Marés" pode, mais uma vez, nos ensinar como é possível revirar o Brasil, para dar pertinência ao que se esconde ou se perde, todos os dias. Seja na Maré, seja em outras águas, igualmente represadas, e igualmente em busca de uma direção.


DANÇA DAS MARÉS. Quando: RJ, de 4 a 29/9. SP, de 9 a 27/10. Onde: Rio - Ginásio do SESC Tijuca. São Paulo - Ginásio do SESC Ipiranga. Quanto: R$ 6 e R$ 12.



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