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CARLOS HEITOR CONY
Grande cena dos tomates de dona Balbina
Dona Balbina -apesar de anedótico, o nome dela era esse mesmo- segurava o cesto de tomates, mostrando-o a meu pai. Era
uma portuguesa magra, de olheiras, e se não tivesse ficado em minha memória por outro motivo,
teria ficado por um detalhe: foi a
primeira mulher de bigode que
conheci. Não era um buço, uma
sombra no rosto. Era bigode mesmo, ralo, mas bigode. Na rua, os
meninos se referiam a ela como a
""Bigoduda".
Eu tinha medo dela. Nunca me
fizera mal, pelo contrário, certa
vez ela me vendeu um apito de
barro. Era comum os meninos terem um apito daqueles, não servia para nada, mas dava status.
Na hora de pagá-la, deixei o apito
cair. Como era de barro, como todos nós humanos, quebrou-se.
Com pena de mim, ela me deu outro, tirando-o da fieira pendurada na porta de sua quitanda. E ficou por isso mesmo.
Apesar dessa gentileza, tinha
medo dela. Frequentava meus pesadelos infantis com seu buço
agressivo e as olheiras que faziam
seu rosto denunciar a caveira que
havia atrás dele. Hoje, tantíssimos
anos passados, ainda frequenta
meus pesadelos e, sobretudo, minha consciência.
Naquela manhã, o pai pediu
que eu fosse à quitanda de dona
Balbina, ele almoçava mais cedo
do que o resto da família e amanhecera com vontade de comer
salada de tomates -o que era
uma extravagância da parte dele,
que gostava de comidas fortes,
carnes-secas terríveis, lombos de
porco luxuriantes, mocotós incrementados, tudo o que era politicamente incorreto e fazia mal à saúde. Ele achava, com razão ou sem
ela, que salada em geral -e a de
tomate em particular- era coisa
de veado (naquele tempo não se
dizia veado, mas maricas, o que
dava na mesma).
Lá fui eu à quitanda em busca
dos tomates, com a moedinha
amarela de mil réis no bolso. Naquele tempo, apesar da geladeira
que entupia um canto da cozinha
e que era uma pioneira na rua
Cabuçu e adjacências, não se fazia estoque de verduras. Elas vinham, matinais e frescas, das hortas vizinhas e não precisavam
cumprir o purgatório refrigerado
da GE branca e ventruda, um dos
nossos orgulhos domésticos.
No meio do caminho não havia
nenhuma pedra, mas um grupo
de meninos que trocavam figurinhas das balas Ruth, que todos
juntávamos. Quem não andasse
com um maço de duplicatas no
bolso era um excluído, um pária,
um elemento abominável da espécie humana. O fato é que fiquei
por aí, esqueci a quitanda. Voltei
para casa de mãos vazias. O pai
cobrou os tomates, devolvi-lhe a
moedinha e disse que os tomates
haviam acabado.
O pai substituiu a salada por
linguiças formidandas, com dois
ovos fritos em cima. Para todos os
efeitos, estava bem alimentado
para a faina do seu dia, que muitas vezes consistia em nada fazer
a não ser trocar outro tipo de figurinhas com os colegas das redações do Rio -que tampouco faziam algo.
Esqueci a quitanda e dediquei-me a consertar o velocípede do irmão menor, que tinha perdido
uma das rodas. Fui chamado às
pressas à quitanda de dona Balbina. Minha presença era requisitada pelo pai, como testemunha de
acusação.
Deu-se que, ao ir pegar o ônibus,
ele passara pela quitanda e vira,
bem à porta, o cesto de tomates de
dona Balbina. Armou um escândalo, dona Balbina soluçava, proclamava que naquela manhã
ninguém fora comprar tomates.
Vivi os piores momentos da minha vida (viveria outros igualmente piores, mas este foi o inaugural, o mais devastador). Cheguei à quitanda, dona Balbina
exibia o cesto cheio de tomates. O
pai exigiu que eu confirmasse a
negativa dela em me vender os
malditos tomates. Eu confirmei.
Dona Balbina deixou o cesto cair,
os tomates rolaram pelo chão, ela
erguia os pulsos para o céu, clamando justiça para ela e castigo
para mim. O pai encerrou a contenda com uma sentença que ouço ainda, em minhas noites de
pânico: ""Filho meu não mente!".
Era uma forma de elogiar-se a
si mesmo, às minhas custas. Na
verdade, o pai era tão mentiroso
quanto eu, herdei-lhe esse defeito
genético, embora suas mentiras
fossem inocentes, não causavam
malefício. As minhas sempre foram mais graves -sendo a mais
grave de todas a dos tomates de
dona Balbina.
Meses após, ao fazer a primeira
comunhão, foi esse o pecado mais
sério que confessei. O padre me
absolveu, Deus me absolveu, mas
eu nunca me absolvi. Séculos se
passaram, não progredi na senda
do crime, jamais violei sepulturas, não estuprei freiras, nem degolei criancinhas. Mas volta e
meia acordo encharcado de suor,
o coração na boca, como se tivesse
cometido um crime monstruoso
que ainda devo purgar.
Dona Balbina, com seu buço de
portuguesa peluda, suas olheiras
e seu cesto de tomates, frequenta
minhas noite de pavor. ""Filho
meu não mente!" Dona Balbina
foi embora deste mundo, o pai
também foi embora. Sobrei eu
com a sinistra herança de ser fiel
à verdade -que quase sempre é a
forma submersa da vergonha.
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