São Paulo, Sexta-feira, 20 de Agosto de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
Grande cena dos tomates de dona Balbina

Dona Balbina -apesar de anedótico, o nome dela era esse mesmo- segurava o cesto de tomates, mostrando-o a meu pai. Era uma portuguesa magra, de olheiras, e se não tivesse ficado em minha memória por outro motivo, teria ficado por um detalhe: foi a primeira mulher de bigode que conheci. Não era um buço, uma sombra no rosto. Era bigode mesmo, ralo, mas bigode. Na rua, os meninos se referiam a ela como a ""Bigoduda".
Eu tinha medo dela. Nunca me fizera mal, pelo contrário, certa vez ela me vendeu um apito de barro. Era comum os meninos terem um apito daqueles, não servia para nada, mas dava status. Na hora de pagá-la, deixei o apito cair. Como era de barro, como todos nós humanos, quebrou-se. Com pena de mim, ela me deu outro, tirando-o da fieira pendurada na porta de sua quitanda. E ficou por isso mesmo.
Apesar dessa gentileza, tinha medo dela. Frequentava meus pesadelos infantis com seu buço agressivo e as olheiras que faziam seu rosto denunciar a caveira que havia atrás dele. Hoje, tantíssimos anos passados, ainda frequenta meus pesadelos e, sobretudo, minha consciência.
Naquela manhã, o pai pediu que eu fosse à quitanda de dona Balbina, ele almoçava mais cedo do que o resto da família e amanhecera com vontade de comer salada de tomates -o que era uma extravagância da parte dele, que gostava de comidas fortes, carnes-secas terríveis, lombos de porco luxuriantes, mocotós incrementados, tudo o que era politicamente incorreto e fazia mal à saúde. Ele achava, com razão ou sem ela, que salada em geral -e a de tomate em particular- era coisa de veado (naquele tempo não se dizia veado, mas maricas, o que dava na mesma).
Lá fui eu à quitanda em busca dos tomates, com a moedinha amarela de mil réis no bolso. Naquele tempo, apesar da geladeira que entupia um canto da cozinha e que era uma pioneira na rua Cabuçu e adjacências, não se fazia estoque de verduras. Elas vinham, matinais e frescas, das hortas vizinhas e não precisavam cumprir o purgatório refrigerado da GE branca e ventruda, um dos nossos orgulhos domésticos.
No meio do caminho não havia nenhuma pedra, mas um grupo de meninos que trocavam figurinhas das balas Ruth, que todos juntávamos. Quem não andasse com um maço de duplicatas no bolso era um excluído, um pária, um elemento abominável da espécie humana. O fato é que fiquei por aí, esqueci a quitanda. Voltei para casa de mãos vazias. O pai cobrou os tomates, devolvi-lhe a moedinha e disse que os tomates haviam acabado.
O pai substituiu a salada por linguiças formidandas, com dois ovos fritos em cima. Para todos os efeitos, estava bem alimentado para a faina do seu dia, que muitas vezes consistia em nada fazer a não ser trocar outro tipo de figurinhas com os colegas das redações do Rio -que tampouco faziam algo.
Esqueci a quitanda e dediquei-me a consertar o velocípede do irmão menor, que tinha perdido uma das rodas. Fui chamado às pressas à quitanda de dona Balbina. Minha presença era requisitada pelo pai, como testemunha de acusação.
Deu-se que, ao ir pegar o ônibus, ele passara pela quitanda e vira, bem à porta, o cesto de tomates de dona Balbina. Armou um escândalo, dona Balbina soluçava, proclamava que naquela manhã ninguém fora comprar tomates.
Vivi os piores momentos da minha vida (viveria outros igualmente piores, mas este foi o inaugural, o mais devastador). Cheguei à quitanda, dona Balbina exibia o cesto cheio de tomates. O pai exigiu que eu confirmasse a negativa dela em me vender os malditos tomates. Eu confirmei. Dona Balbina deixou o cesto cair, os tomates rolaram pelo chão, ela erguia os pulsos para o céu, clamando justiça para ela e castigo para mim. O pai encerrou a contenda com uma sentença que ouço ainda, em minhas noites de pânico: ""Filho meu não mente!".
Era uma forma de elogiar-se a si mesmo, às minhas custas. Na verdade, o pai era tão mentiroso quanto eu, herdei-lhe esse defeito genético, embora suas mentiras fossem inocentes, não causavam malefício. As minhas sempre foram mais graves -sendo a mais grave de todas a dos tomates de dona Balbina.
Meses após, ao fazer a primeira comunhão, foi esse o pecado mais sério que confessei. O padre me absolveu, Deus me absolveu, mas eu nunca me absolvi. Séculos se passaram, não progredi na senda do crime, jamais violei sepulturas, não estuprei freiras, nem degolei criancinhas. Mas volta e meia acordo encharcado de suor, o coração na boca, como se tivesse cometido um crime monstruoso que ainda devo purgar.
Dona Balbina, com seu buço de portuguesa peluda, suas olheiras e seu cesto de tomates, frequenta minhas noite de pavor. ""Filho meu não mente!" Dona Balbina foi embora deste mundo, o pai também foi embora. Sobrei eu com a sinistra herança de ser fiel à verdade -que quase sempre é a forma submersa da vergonha.


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