São Paulo, quarta-feira, 20 de setembro de 2000

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ARTIGO
Uma oportunidade para mostrar que é possível sair da mesmice

MARCELO CARVALHO FERRAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

O momento pelo qual passa o teatro Oficina, em busca de um lugar ao sol, do ponto de vista arquitetônico-urbanístico, é sintomático e exemplar. Representa, em pequeno, aquilo que toda a cidade vive, ou agoniza, entre um empreendimento aqui, outro acolá, a correr atrás do lucro financeiro em detrimento do lucro sociocultural. Vivemos a falta total de planos urbanos que possam apontar vocações locais e evitar o desperdício, a destruição de referências, testemunhos da história, em suma, de elementos que acalentam a alma do morador da urbe.
Neste momento, apresenta-se à opinião pública um projeto que ocupará toda a quadra circundante do teatro Oficina para a construção de um grande shopping center do grupo Silvio Santos. Alguns até chegam a chamá-lo de shopping cultural. Ora, o que é cultural não é preciso se auto-intitular cultural; portanto, fiquemos com o simples shopping, torcendo para que produza cultura, emanada do encontro e da possibilidade de convivência dos diversos.
O teatro Oficina, em sua versão atual, projetada por Lina Bo Bardi e Edson Elito, abraçou a idéia do teatro-rua em expansão. Em sua configuração físico-espacial já é a rua, por enquanto sem saída, que anseia pela travessia de toda a quadra, cruzando o terreno que hoje é usado por um estacionamento.
Esse microcosmo no Bexiga, essa "percepção local", com endereço, nome na história do teatro brasileiro há 40 anos, vivendo o risco do sufocamento por um shopping center, nos apresenta o espetáculo das transformações urbanas de hoje. Por que não pensamos que quanto mais se anulam ou se eliminam as diversidades mais empobrecemos espiritualmente? Seria o grande momento do sr. Silvio Santos dar o troco à cidade e aos cidadãos que o apoiaram em sua brilhante carreira, construindo o shopping mais ousado dentre todos os que aí estão, incorporando o Oficina, a rua, a travessia e a vida democrática dos espaços públicos. Seria uma provocação e ao mesmo tempo um ato de crença e esperança no Ser Urbano, que anda com a auto-estima tão em baixa.
O inevitável shopping center se aproxima do Bexiga. Afinal, eles vieram para ficar. Já são dezenas por toda a cidade, a testemunhar e/ou comprovar a falência das ruas e praças, espaços nascidos sobretudo da convivência com urbanidade entre os cidadãos.
Cabe então aos arquitetos e investidores o desafio de dar a volta por cima: transformar o veneno em soro, salvação. Vamos projetar um shopping que seja a afirmação da vida urbana com tudo que ela pode significar, integrado ou ancorado nas ruas da cidade. Não o shopping murado, como todos os que temos, que abstrai as ruas, o entorno, enfim, a cidade, dando-lhe as costas.
Seria impossível o projeto do shopping anti-shopping, com ou sem "cultural" no nome, que levasse em consideração não só o teatro Oficina em sua vocação histórica, mas todo o Bexiga, com seu imaginário e rica vida concreta ainda!?
A existência de um shopping center no Bexiga não deve e não pode ser a negação de formas de vida diversas e de variados usos dos espaços, que constituem a riqueza das cidades, do ponto de vista Urbano/Humano. Um shopping ali deve respeitar as peculiaridades e diversidades de espaços, ocupações, usos, memória e referências que fazem do Bexiga o Bexiga.
Se vieram mesmo para ficar, que se transmutem, que sejam ricos em diversidades e se façam sem o prejuízo da vizinhança, sem o habitual "saneamento social" de que certas iniciativas urbanísticas Brasil afora tem lançado mão.
Não queremos a cidade das prisões, sejam elas do trânsito, dos carandirus ou dos alphavilles e condomínios de luxo fechados, onde se escondem a violência e o medo, pois que andam juntos.
De tanta cópia da vida americana, por que é que fomos incorporar em nossas cidades o pior? E aquele sonho do gramado comum entre casas que de divisão tem, quando muito, uma cerca viva? Pois aqui em São Paulo temos, nos parcos espaços públicos, as grades e não a grama. Basta lembrar o largo da Batata, em Pinheiros, o largo 13, em Santo Amaro, o parque D. Pedro 2º, que, de parque só tem o nome, para começar a lista de horrores espaciais (de espaço terrestre) em que vivemos.
Voltando ao nosso teatro Oficina, cabe dizer que o arquiteto Júlio Neves, autor do projeto do empreendimento Silvio Santos, está com a faca e o queijo na mão: o delicioso desafio que todo arquiteto sonha em encontrar um dia, de trazer mais conforto à sofrida, alegre, rica, triste, plural vida do cidadão deste monstro chamado São Paulo. Neste caso, será o de projetar um shopping center que incorpore um teatro popular forte, autônomo e cheio de história, que cumpra o seu papel/fundamento de ser espaço público, levando adiante o teatro-rua, a travessia entre a Jaceguay e a Japurá que, simbolicamente, será a "travessia das fortes e desumanas muralhas dos shopping centers".
É um momento de ouro para mostrar que é possível sair da mesmice, da prisão, da cafua de sempre, dos shoppings com praças de alimentação sem sabor e dos parques temáticos sem temas. Ali, o sabor e o tema são o Bexiga e, mais precisamente, o teatro Oficina. O desafio está lançado.


Marcelo Carvalho Ferraz é arquiteto e organizador do livro "Lina Bo Bardi" (Instituto Lina Bo e P.M. Bardi)


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