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ARTIGO
Uma oportunidade para mostrar que é possível sair da mesmice
MARCELO CARVALHO FERRAZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
O momento pelo qual passa
o teatro Oficina, em busca de
um lugar ao sol, do ponto de vista
arquitetônico-urbanístico, é sintomático e exemplar. Representa,
em pequeno, aquilo que toda a cidade vive, ou agoniza, entre um
empreendimento aqui, outro acolá, a correr atrás do lucro financeiro em detrimento do lucro sociocultural. Vivemos a falta total de
planos urbanos que possam
apontar vocações locais e evitar o
desperdício, a destruição de referências, testemunhos da história,
em suma, de elementos que acalentam a alma do morador da urbe.
Neste momento, apresenta-se à
opinião pública um projeto que
ocupará toda a quadra circundante do teatro Oficina para a
construção de um grande shopping center do grupo Silvio Santos. Alguns até chegam a chamá-lo de shopping cultural. Ora, o
que é cultural não é preciso se auto-intitular cultural; portanto, fiquemos com o simples shopping,
torcendo para que produza cultura, emanada do encontro e da
possibilidade de convivência dos
diversos.
O teatro Oficina, em sua versão
atual, projetada por Lina Bo Bardi
e Edson Elito, abraçou a idéia do
teatro-rua em expansão. Em sua
configuração físico-espacial já é a
rua, por enquanto sem saída, que
anseia pela travessia de toda a
quadra, cruzando o terreno que
hoje é usado por um estacionamento.
Esse microcosmo no Bexiga, essa "percepção local", com endereço, nome na história do teatro
brasileiro há 40 anos, vivendo o
risco do sufocamento por um
shopping center, nos apresenta o
espetáculo das transformações
urbanas de hoje. Por que não pensamos que quanto mais se anulam ou se eliminam as diversidades mais empobrecemos espiritualmente? Seria o grande momento do sr. Silvio Santos dar o
troco à cidade e aos cidadãos que
o apoiaram em sua brilhante carreira, construindo o shopping
mais ousado dentre todos os que
aí estão, incorporando o Oficina,
a rua, a travessia e a vida democrática dos espaços públicos. Seria
uma provocação e ao mesmo
tempo um ato de crença e esperança no Ser Urbano, que anda
com a auto-estima tão em baixa.
O inevitável shopping center se
aproxima do Bexiga. Afinal, eles
vieram para ficar. Já são dezenas
por toda a cidade, a testemunhar
e/ou comprovar a falência das
ruas e praças, espaços nascidos
sobretudo da convivência com
urbanidade entre os cidadãos.
Cabe então aos arquitetos e investidores o desafio de dar a volta
por cima: transformar o veneno
em soro, salvação. Vamos projetar um shopping que seja a afirmação da vida urbana com tudo
que ela pode significar, integrado
ou ancorado nas ruas da cidade.
Não o shopping murado, como
todos os que temos, que abstrai as
ruas, o entorno, enfim, a cidade,
dando-lhe as costas.
Seria impossível o projeto do
shopping anti-shopping, com ou
sem "cultural" no nome, que levasse em consideração não só o
teatro Oficina em sua vocação histórica, mas todo o Bexiga, com
seu imaginário e rica vida concreta ainda!?
A existência de um shopping
center no Bexiga não deve e não
pode ser a negação de formas de
vida diversas e de variados usos
dos espaços, que constituem a riqueza das cidades, do ponto de
vista Urbano/Humano. Um
shopping ali deve respeitar as peculiaridades e diversidades de espaços, ocupações, usos, memória
e referências que fazem do Bexiga
o Bexiga.
Se vieram mesmo para ficar,
que se transmutem, que sejam ricos em diversidades e se façam
sem o prejuízo da vizinhança,
sem o habitual "saneamento social" de que certas iniciativas urbanísticas Brasil afora tem lançado mão.
Não queremos a cidade das prisões, sejam elas do trânsito, dos
carandirus ou dos alphavilles e
condomínios de luxo fechados,
onde se escondem a violência e o
medo, pois que andam juntos.
De tanta cópia da vida americana, por que é que fomos incorporar em nossas cidades o pior? E
aquele sonho do gramado comum entre casas que de divisão
tem, quando muito, uma cerca viva? Pois aqui em São Paulo temos,
nos parcos espaços públicos, as
grades e não a grama. Basta lembrar o largo da Batata, em Pinheiros, o largo 13, em Santo Amaro, o
parque D. Pedro 2º, que, de parque só tem o nome, para começar
a lista de horrores espaciais (de
espaço terrestre) em que vivemos.
Voltando ao nosso teatro Oficina, cabe dizer que o arquiteto Júlio Neves, autor do projeto do empreendimento Silvio Santos, está
com a faca e o queijo na mão: o
delicioso desafio que todo arquiteto sonha em encontrar um dia,
de trazer mais conforto à sofrida,
alegre, rica, triste, plural vida do
cidadão deste monstro chamado
São Paulo. Neste caso, será o de
projetar um shopping center que
incorpore um teatro popular forte, autônomo e cheio de história,
que cumpra o seu papel/fundamento de ser espaço público, levando adiante o teatro-rua, a travessia entre a Jaceguay e a Japurá
que, simbolicamente, será a "travessia das fortes e desumanas
muralhas dos shopping centers".
É um momento de ouro para
mostrar que é possível sair da
mesmice, da prisão, da cafua de
sempre, dos shoppings com praças de alimentação sem sabor e
dos parques temáticos sem temas.
Ali, o sabor e o tema são o Bexiga
e, mais precisamente, o teatro Oficina. O desafio está lançado.
Marcelo Carvalho Ferraz é arquiteto e
organizador do livro "Lina Bo Bardi" (Instituto Lina Bo e P.M. Bardi)
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