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ARTE E PSICANÁLISE
Mostra paralela a "Conflito e Cultura" aborda relação entre modernismo e as teorias do vienense
Mário de Andrade no divã de Freud
ANDRÉ SINGER
DA REPORTAGEM LOCAL
Uma exposição brasileira, que
será montada junto com a mostra
internacional "Freud: Cultura e
Conflito" vai revelar ricas e surpreendentes conexões entre o
movimento modernista de Mário
e Oswald de Andrade e a obra do
mais famoso intelectual que Viena produziu.
Intitulado "Brasil: Psicanálise e
Modernismo", o segmento idealizado pelo psicanalista Leopoldo
Nosek será acoplado ao material
que vem de Washington para o
Masp em 2 de outubro. Dos mais
de 300 documentos e obras que
serão expostos, chamam a atenção, sobretudo, os que iluminam
a profunda imbricação entre Mário de Andrade (1893-1945) e o
pensamento de Freud.
Destaca-se também a profunda
influência da psicanálise sobre o
pintor Flávio de Carvalho (1899-1973) (leia texto à pág. E 7).
O vínculo de Mário com a psicanálise só não chegou ao ponto de
ele próprio submeter-se a uma.
"Mas, com os conhecimentos psicanalíticos imperfeitos que tinha,
ele se auto-analisou em profundidade", conta a professora emérita
da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) Gilda de
Mello e Souza, a maior autoridade
em Mário de Andrade junto com
a professora de literatura da USP
Telê Porto Ancona Lopez.
Docente aposentada de estética,
Gilda é prima em segundo grau de
Mário. Mais do que isso, entre
1930 e 1943 viveu na mesma casa
em que o primo, 25 anos mais velho, morava com a mãe, uma tia e
a irmã mais nova. Quando o escritor morreu, em 1945, Gilda havia
desenvolvido com ele uma profunda relação intelectual. "A ligação com a psicanálise é decisiva
para entender a biografia e a obra
de Mário", afirma Gilda.
O assunto, já levantado, por
exemplo, no excelente livro de
Moacir Werneck de Castro, "Mário de Andrade, Exílio no Rio"
(Rocco, 1989), está à espera de um
estudo definitivo. "Há um grande
trabalho de rastreamento a ser feito", diz Telê, que organiza, no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB)
da USP, os arquivos do escritor.
A pesquisa para a exposição do
Masp, desenvolvida por um grupo de 20 psicanalistas e coordenada por Maria Ângela Moretzsohn,
da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, ajudou a descobrir mais alguns elos da afinidade entre Mário e Freud. Mas,
para além dos documentos em
ordem cronológica que serão exibidos no Masp -em "Paulicéia
Desvairada" (de 1921), por exemplo, Mário já escrevia sobre a censura "descoberta por Freud" -,
há uma fascinante tese ainda a ser
comprovada.
Em resumo, trata-se do seguinte. Como se sabe, Mário de Andrade morreu solteiro. Os registros biográficos mais confiáveis
falam de quatro grandes amores
femininos. Alguns deles, platônicos. Apesar disso, a hipótese de
uma suposta homossexualidade
espalhou-se. Nada nos documentos publicados até agora confirma
o boato.
Na verdade, não importa se Mário era hetero, homo ou bissexual.
A auto-análise, que aparece na
volumosa correspondência, revela um homem para quem o sexo
ficou, por assim dizer, irrealizado.
Ao falar de sua sensualidade,
Mário escreve a uma amiga
(Oneida Alvarenga), em 1940: "O
importante é verificar que não se
trata absolutamente dessa sensualidade mesquinhamente fixada na realização dos atos do amor
sexual, mas de uma faculdade
que, embora sexual sempre e duma intensidade extraordinária, é
vaga, incapaz de se fixar numa determinada ordem de prazeres que
nem mesmo são de ordem física.
Uma espécie de pansexualismo,
muito mais elevada e, afinal de
contas, casta do que se poderia
imaginar".
Não por acaso, o primeiro romance escrito por ele chama-se
"Amar, Verbo Intransitivo". Ou
seja, o amor que não tem objeto,
como nota, em belo achado, Werneck de Castro.
Na biblioteca da casa do escritor, na rua Lopes Chaves, 546, em
São Paulo, foram encontrados sete livros de Freud em francês, lidos e grifados por Mário. Hoje estão guardados como relíquias no
Instituto de Estudos Brasileiros.
O mais marcado dos volumes é
o "Trois Essais sur la Théorie de la
Sexualité" (Três Ensaios sobre a
Teoria da Sexualidade). Ele contém palavras assinaladas e acompanhadas de uma versão para o
português escritas a lápis por Mário. Uma delas é "refoulement",
normalmente traduzida por recalque. Mas o escritor anotou ao
lado: "sequestro".
A idéia de sequestro, no sentido
de repressão de um sentimento,
vai aparecer em diversas passagens dos escritos andradinos. Numa carta-crítica ao livro de estréia
de Carlos Drummond de Andrade, "Alguma Poesia", em 1930, ele
diz: "(...) Noto dois sequestros
que frequentam o seu livro. Um
deles você conseguiu sublimar
(no sentido freudiano) com "humour" e ficou magnífico. É o que
chamarei de "sequestro da vida
besta". O outro, o "sequestro sexual", que é muito mais curioso,
você não conseguiu propriamente sublimar (...)".
A idéia de sequestro, tão importante para a vida de Mário, que teria recalcado a sexualidade dele
mesmo, acaba por entrar na visão
que o escritor forma a respeito de
um aspecto da cultura brasileira.
Ele acredita que uma das chaves
para compreender o Brasil está no
fato de que, ao virem para cá, os
navegantes deixaram as mulheres
na Europa.
"O sequestro, no sentido de recalque, de transferência e de sublimação do sentimento amoroso, marca a literatura oral lusitana
e brasileira", explica Telê. "Como
a onda do mar, o desejo recua e
volta na forma de símbolos como
a sereia, as bandas do além e a
mulher no barquinho que se afasta sempre do navegante."
Essas idéias estão em uma conferência inédita chamada "O Sequestro da Dona Ausente", que
ele proferiu em São Paulo na década de 30. Na platéia estava presente Dina Lévi-Strauss, mulher
do antropólogo Claude Lévi-Strauss. Ela trabalhava com Mário no Departamento de Cultura.
"Embora não seja a palavra que
se use comumente, sequestro me
parece uma linda variante para
recalque", comenta a psicanalista
Moretzsohn.Quem sabe, além de
ter absorvido em profundidade a
psicanálise ao elaborar o modernismo, Mário de Andrade acabe
por influenciar a própria psicanálise no Brasil. "O fato de ele ser um
poeta fez com que usasse o termo
com um acréscimo de sentido",
diz Gilda de Mello e Souza.
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