São Paulo, quarta-feira, 20 de setembro de 2000

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MARCELO COELHO
Tédio e arte nas Olimpíadas

Não tenho o menor interesse pela Olimpíada, e a questão do fuso horário me dá uma espécie de satisfação perversa: torna-se impossível acompanhar o evento em tempo real, o que acentua sua inutilidade, seu caráter puramente imaginário.
Um amigo, que gosta de esportes, fez um desabafo parecido. Ele se cansa com a enorme, a maciça, a inesgotável cobertura do evento. Tudo parece feito sob medida para as necessidades da CNN e do Sportv.
Como se sabe, a rede internacional de notícias sofre com a falta de notícias internacionais. Todo telespectador já experimentou o tédio de ver a crise árabe-israelense repetida e analisada mil vezes sem nenhum fato novo a alimentá-la...
É essa ausência de fatos que a Olimpíada de Sydney vem suprir. O próprio leitor da Folha tem em mãos um suplemento diário dando conta do clima olímpico, dos feitos, das derrotas e das vitórias de atletas de quem nunca ouviu falar. Faz sentido todo esse espetáculo?
Como espectador, como cidadão, diria que não. Pelo menos, para meu reconforto, a Olimpíada coincide com a disputa pela Prefeitura de São Paulo, dividindo um pouco o noticiário com um assunto que me interessa mais.
A partir desse ponto de vista muito antipático, tento apresentar, contudo, alguns argumentos a favor da Olimpíada.
Dizem que esporte "é emoção". Pode ser. Pessoalmente, não sinto emoção nenhuma -se por "emoção" entendermos a torcida pela esperança brasileira na esgrima, no lançamento de martelo ou em determinada classe de iatismo.
Claro que o grande prazer de quem assiste a uma competição esportiva é o de torcer pelo país ou pelo time favorito. Quero, entretanto, destacar algo de mais nobre e desinteressado do que a pura torcida emocional.
Há uma "beleza" nos Jogos Olímpicos que transcende a pura sede de medalhas e vitórias. No interesse "desinteressado" do espectador que simplesmente aprecia o espetáculo esportivo, sem mais torcer pelo triunfo de seu país, há um fenômeno que cumpre analisar do ponto de vista estético, não apenas "emocional".
As Olimpíadas têm um valor artístico que não se resume apenas ao envolvimento patriótico, ao ideal abstrato da confraternização entre os povos, ou à admiração que corpos atléticos possam produzir.
De resto, quem estiver procurando beleza física na Olimpíada tem muitas razões para se decepcionar. A técnica esportiva se especializou tanto que são raras as modalidades capazes de embelezar o corpo humano: topo com jogadoras de basquete horrendas, com levantadores de peso disformes, com triatletas roídos no próprio esforço.
Mesmo as adolescentes especializadas em ginástica olímpica não são "bonitas", muito menos "excitantes". Num mundo excitável ao extremo, o milagre das Olimpíadas está em tornar desinteressante, do ponto de vista sexual, o corpo humano.
Fixamo-nos nas proezas corporais da pequena atleta que, como um inseto de carne, pula sobre o cavalete com perfeição. Não sou -e imagino que o leitor tampouco seja- tarado ao ponto de extrair da cena algum prurido genital.
Pois bem -nisso está o segredo da estética esportiva: o fato de nosso olhar, como preconizava o velho Kant, obter prazer sem fisiologismo, sem pretender imediatamente uma compensação corporal.
Nisso está a nobreza estética do esporte -algo que vai além da emoção do torcedor e da atração física do "voyeur". Talvez o espetáculo esportivo seja o verdadeiro substituto da arte para as massas. Noto alguns aspectos que fazem do esporte um acontecimento estético.
1) Há beleza no fato de um corpo humano vencer tudo o que o arrasta rumo à inatividade, à inércia, à preguiça. Quando um atleta salta dois metros acima do normal, vemos uma vitória sobre a matéria, sobre a gravidade. É a mesma coisa que nos encanta na dança, na arquitetura.
2) Há beleza quando, num único gesto, num único lance, decide-se uma partida. O gol do craque, a cesta de Janeth, são mais do que uma jogada excepcional. Seu poder estético está no fato de resumirem, num gesto, toda a luta que víamos ser desencadeada ao longo da partida. Um momento dramático funciona como resumo do que estava acontecendo. É o mesmo processo que nos cativa no teatro, na ópera: a narração épica se concentra num instante extremamente expressivo.
3) Há beleza quando sabemos que todo aquele esforço olímpico se concentra, no fundo, em torno de uma frivolidade, de um nada: que interessa quebrar um recorde medido em meio centímetro, em meio segundo? A frivolidade do esforço tem, na verdade, um aspecto moral. Representa a capacidade humana de lutar por valores, não por interesses. É o que produz em nós uma empatia superior ao simples patriotismo, à simples torcida.
Três aspectos, portanto, capazes de me reconciliar com a Olimpíada. Continuo ainda sem querer ver os Jogos pela TV. Mas a estética da coisa tem qualidades -e todo esporte, no fundo, é estética para as massas- que seria desonesto ignorar.


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