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MARCELO COELHO
Tédio e arte nas Olimpíadas
Não tenho o menor interesse pela Olimpíada, e a
questão do fuso horário me dá
uma espécie de satisfação perversa: torna-se impossível acompanhar o evento em tempo real, o
que acentua sua inutilidade, seu
caráter puramente imaginário.
Um amigo, que gosta de esportes, fez um desabafo parecido. Ele
se cansa com a enorme, a maciça,
a inesgotável cobertura do evento. Tudo parece feito sob medida
para as necessidades da CNN e do
Sportv.
Como se sabe, a rede internacional de notícias sofre com a falta de notícias internacionais. Todo telespectador já experimentou
o tédio de ver a crise árabe-israelense repetida e analisada mil vezes sem nenhum fato novo a alimentá-la...
É essa ausência de fatos que a
Olimpíada de Sydney vem suprir.
O próprio leitor da Folha tem em
mãos um suplemento diário dando conta do clima olímpico, dos
feitos, das derrotas e das vitórias
de atletas de quem nunca ouviu
falar. Faz sentido todo esse espetáculo?
Como espectador, como cidadão, diria que não. Pelo menos,
para meu reconforto, a Olimpíada coincide com a disputa pela
Prefeitura de São Paulo, dividindo um pouco o noticiário com um
assunto que me interessa mais.
A partir desse ponto de vista
muito antipático, tento apresentar, contudo, alguns argumentos
a favor da Olimpíada.
Dizem que esporte "é emoção".
Pode ser. Pessoalmente, não sinto
emoção nenhuma -se por "emoção" entendermos a torcida pela
esperança brasileira na esgrima,
no lançamento de martelo ou em
determinada classe de iatismo.
Claro que o grande prazer de
quem assiste a uma competição
esportiva é o de torcer pelo país ou
pelo time favorito. Quero, entretanto, destacar algo de mais nobre e desinteressado do que a pura torcida emocional.
Há uma "beleza" nos Jogos
Olímpicos que transcende a pura
sede de medalhas e vitórias. No
interesse "desinteressado" do espectador que simplesmente aprecia o espetáculo esportivo, sem
mais torcer pelo triunfo de seu
país, há um fenômeno que cumpre analisar do ponto de vista estético, não apenas "emocional".
As Olimpíadas têm um valor
artístico que não se resume apenas ao envolvimento patriótico,
ao ideal abstrato da confraternização entre os povos, ou à admiração que corpos atléticos possam
produzir.
De resto, quem estiver procurando beleza física na Olimpíada
tem muitas razões para se decepcionar. A técnica esportiva se especializou tanto que são raras as
modalidades capazes de embelezar o corpo humano: topo com jogadoras de basquete horrendas,
com levantadores de peso disformes, com triatletas roídos no próprio esforço.
Mesmo as adolescentes especializadas em ginástica olímpica
não são "bonitas", muito menos
"excitantes". Num mundo excitável ao extremo, o milagre das
Olimpíadas está em tornar desinteressante, do ponto de vista sexual, o corpo humano.
Fixamo-nos nas proezas corporais da pequena atleta que, como
um inseto de carne, pula sobre o
cavalete com perfeição. Não sou
-e imagino que o leitor tampouco seja- tarado ao ponto de extrair da cena algum prurido genital.
Pois bem -nisso está o segredo
da estética esportiva: o fato de
nosso olhar, como preconizava o
velho Kant, obter prazer sem fisiologismo, sem pretender imediatamente uma compensação
corporal.
Nisso está a nobreza estética do
esporte -algo que vai além da
emoção do torcedor e da atração
física do "voyeur". Talvez o espetáculo esportivo seja o verdadeiro
substituto da arte para as massas.
Noto alguns aspectos que fazem
do esporte um acontecimento estético.
1) Há beleza no fato de um corpo humano vencer tudo o que o
arrasta rumo à inatividade, à
inércia, à preguiça. Quando um
atleta salta dois metros acima do
normal, vemos uma vitória sobre
a matéria, sobre a gravidade. É a
mesma coisa que nos encanta na
dança, na arquitetura.
2) Há beleza quando, num único gesto, num único lance, decide-se uma partida. O gol do craque, a
cesta de Janeth, são mais do que
uma jogada excepcional. Seu poder estético está no fato de resumirem, num gesto, toda a luta
que víamos ser desencadeada ao
longo da partida. Um momento
dramático funciona como resumo do que estava acontecendo. É
o mesmo processo que nos cativa
no teatro, na ópera: a narração
épica se concentra num instante
extremamente expressivo.
3) Há beleza quando sabemos
que todo aquele esforço olímpico
se concentra, no fundo, em torno
de uma frivolidade, de um nada:
que interessa quebrar um recorde
medido em meio centímetro, em
meio segundo? A frivolidade do
esforço tem, na verdade, um aspecto moral. Representa a capacidade humana de lutar por valores, não por interesses. É o que
produz em nós uma empatia superior ao simples patriotismo, à
simples torcida.
Três aspectos, portanto, capazes
de me reconciliar com a Olimpíada. Continuo ainda sem querer
ver os Jogos pela TV. Mas a estética da coisa tem qualidades -e
todo esporte, no fundo, é estética
para as massas- que seria desonesto ignorar.
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