São Paulo, sexta-feira, 20 de setembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

Lula, Serra, Ciro e Garotinho no "Big Brother"

Alguns leitores ficaram chocados com o tédio que venho demonstrando para com a atual sucessão presidencial. Cheguei mesmo, em crônica publicada na página 2, no dia seguinte ao debate que teve Boris Casoy como mediador, a sugerir um ""reality show", tão em moda, tipo "Big Brother" e "Casa dos Artistas", substituindo as apresentações a que estamos assistindo -ou melhor, a que vocês estão assistindo, pois me faltam tempo e interesse para isso.
A idéia, que ofereço de graça aos candidatos, à Justiça Eleitoral e às emissoras, era juntar os quatro postulantes numa casa, trancá-los durante uma semana, sem empregados e sem contato com o mundo exterior, tal como os cardeais quando vão eleger o novo papa e ficam trancafiados no conclave, do qual só podem sair quando um deles é eleito e o cardeal-carmelengo pode anunciar, do alto da sacada da basílica de São Pedro: ""Habemus papam".
Seria bom ver, ao longo de uma semana, como Lula, Serra, Ciro e Garotinho se virariam. Um deles teria de varrer a casa, outro de ir para a cozinha tratar do rancho, outro de atender o telefone, outro de lavar a louça e de arrumar as camas. E todos obrigados a viverem juntos, a brigarem, a se reconciliarem, a torcerem pelo Brasil no caso de haver jogo da seleção no período, a rezarem ou não rezarem antes de dormir, a lavarem a própria roupa, enfim, a serem como são e não como são produzidos pelos marqueteiros durante a campanha e por si mesmos durante a vida pública que tiveram ou que ainda pretendem ter.
Somente assim os eleitores poderão saber como realmente são, qual o mais cordato, o mais educado, o mais disciplinado, o mais sincero, o mais saudável, enfim, qual o melhor. Do jeito que eles se vendem ou que estão sendo vendidos pelos marqueteiros e assessores especiais, são abstrações fantasmagóricas, belas e fagueiras, ou monstros de solérica e trevas, tal como se acusam mutuamente.
Digo isso porque, em eleições passadas, trabalhando numa revista semanal, fui encarregado de cobrir um dia inteiro de campanha de cada candidato à presidência daquele ano. Evidente que fui bem tratado e que tratei bem todos eles, dizendo claramente que ali estava, ao lado deles, levantando a bola para que cortassem e fizessem pontos.
Contando o milagre sem revelar o santo, fiquei pasmo com a mobilidade física, mental e espiritual dos candidatos. Um deles dispunha de excelente estrutura eleitoral, um ônibus enorme, com banheiros, cozinha, ar refrigerado, sala de reuniões, equipamento de vídeo e pequeno estúdio para produção de entrevistas.
Digamos que, em determinado período daquele dia, a comitiva foi à cidade A, fez o que tinha de fazer e depois seguiu para a cidade B, distante meia hora da primeira. Quando voltamos para o ônibus, que nem o Batman teria melhor e mais eficiente, folgamos com o ar refrigerado e os refrescos que nos esperavam, pois fazia um calor de dar insolação ao próprio demônio.
Logo após, uma equipe de assessores desabou sobre o candidato. Na tela do estúdio passou um vídeo sobre a cidade que seria visitada, dados sobre população, superfície, história do município, vultos ilustres que ali nasceram ou viveram, produção agrária ou industrial etc. etc.
Por acaso, na cidade a ser visitada, existia uma freirinha que vivia em cheiro de santidade, uma espécie de frei Damião ou de irmã Zélia, mas guardada ferozmente pela população local, receosa de que o lugar se transformasse em lugar de peregrinação e que virasse bagunça, como a Juazeiro do padre Cícero. Era um patrimônio guardado com avareza por todos.
O candidato, aliás ninguém da comitiva, tinha ouvido falar daquela santa, mas, dias antes, um escalão avançado havia desencavado a freirinha e constatado a importância dela para os eleitores daquele pedaço.
Vi o candidato desembarcar do ônibus com os olhos vidrados, em êxtase espiritual. Assomou o palanque armado na praça principal diante de um povo mais ou menos indiferente. Ele estava em último lugar nas pesquisas daquela zona eleitoral.
Com voz sombria, como se confessasse um pecado hediondo do qual se penitenciasse publicamente, o candidato começou sua arenga: "Meus amigos, eu não podia continuar a minha campanha sem antes vir aqui, a esta gloriosa cidade, pedir a bênção e os conselhos da nossa freirinha, de cuja santidade sou devoto desde criancinha. Ela me tem guiado e inspirado ao longo da vida. Aqui estou como um peregrino à porta do templo, não vim pedir votos, mas a bênção sem a qual não poderei ajudar a Nação a construir um futuro de paz, esperança e justiça social para todos vocês".
O povo, como nos romances de capa-e-espada, estrugiu de entusiasmo. O candidato foi arrastado a uma capelinha, ao fundo da qual viviam meia dúzia de religiosas, entre as quais a extraordinária freirinha, que recebeu o inesperado devoto sem saber de quem se tratava. Deu-lhe a bênção rotineira, prometendo-lhe saúde e paz doméstica. Apesar de não ter sido eleito, o candidato teve 98% dos votos daquela cidade. E meses depois teve pneumonia e uma crise conjugal que quase acabou em divórcio.


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