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CONTARDO CALLIGARIS
A história de Querô
Não é a denúncia, mas a qualidade da história que pode nos revelar uma realidade injusta
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CONSTATAÇÃO DE bilheteria: os
espectadores brasileiros se
interessam cada vez menos
pelos filmes nacionais que tratam da
miséria social.
A leitura, na imprensa, de comentários sobre essa mudança do gosto
dá a impressão de que estaríamos lidando com uma espécie de "Cansei"
cultural: quem tem R$ 10 para gastar no cinema procuraria, naquelas
duas horas, o sossego de pensar em
realidades diferentes das que assolam sua vida cotidiana e a do país.
Depois de cercas elétricas e seguranças armados na porta de casa, eis que
a última defesa seria a simples negação: não me falem mais disso.
Pois é, não acredito nessa tese. Em
compensação, constato o seguinte:
com as devidas exceções, o cinema
de denúncia é chato. E não é o caso
de pensar que o sentimento de chatice seja uma defesa psicológica do
espectador. É mais provável que,
freqüentemente, a intenção de denunciar produza filmes chatos. Como assim "chatos"?
O cinema, como qualquer ficção,
pode nos fazer descobrir realidades
que desconhecíamos ou preferíamos ignorar. Ele pode nos deixar indignados, apavorados e, como se diz,
mais "conscientes" do drama social
ao redor de nós. Mas isso acontece
quando, primeiro, o filme nos conquista, ou seja, banalmente, quando
ele nos conta uma história em cujos
conflitos, dramas e alegrias reconhecemos os percalços de nossa
própria vida.
Ora, na sexta passada, estreou
"Querô", de Carlos Cortez. O filme
está em poucas salas, talvez porque
se presuma que os espectadores resistam a mais um filme de denúncia
da miséria social brasileira.
É uma pena, porque "Querô" não
é um filme sobre a miséria social
brasileira: é um filme tocante que
conta a história de Querô, um adolescente da Baixada Santista que ganhou esse apelido por ter sido abandonado pela mãe, uma prostituta
que se matou ingerindo querosene.
Obviamente, ao longo do filme, visitamos os antros do porto de Santos
e os porões da Febem. Nesse passeio, talvez enxerguemos algo que
preferiríamos não saber, mas isso
acontece graças à complexidade e à
intensidade da história que nos é
contada. Em suma, acontece porque
Querô, tão diferente, parece tão próximo a nós.
Raramente acordamos de uma
noite dormida em cima das cordas
de um barco abandonado, mas todos
sabemos sonhar com a liberdade absoluta que é "prêmio" (envenenado)
da marginalidade. Raramente devemos escolher entre o amor e o assassinato, mas não é raro que, um dia,
tenhamos desistido de um amor que
nos transformaria para seguir um
dever iníquo ou pela simples força
do que parece ser o destino. Poucos
foram abandonados quando bebês,
mas muitos sofrem do sentimento
radical de um desamor, no mínimo,
imaginário. Poucos foram abusados
brutalmente, mas o ódio e a vontade
de matar nos são mais familiares do
que gostamos de admitir.
A qualidade humana da experiência narrada e a maestria de quem
narra fazem com que uma história
nos prenda, por ela se tornar, por assim dizer, universal (ou quase). Nesse caso, pode acontecer, "de brinde", que seu pano social de fundo nos
deixe indignados.
Carlos Cortez se vale da extraordinária atuação do estreante Maxwell
Nascimento como Querô. Ele poderia, aliás, ter confiado mais em Nascimento, cujo rosto fala alto e dispensa a esporádica evocação cinematográfica dos pensamentos do
protagonista.
A origem do roteiro do filme é o
romance de Plínio Marcos, "Querô:
Uma Reportagem Maldita", de 1976.
Em 2002, a adaptação cinematográfica de uma peça de Plínio Marcos
permitiu um filme memorável,
"Dois Perdidos Numa Noite Suja",
de José Joffily. No passado, houve
várias outras adaptações cinematográficas de obras de Plínio Marcos,
inclusive uma do próprio "Querô".
Não as conheço, mas, no caso dessas
duas adaptações, aposto que ambas
devem uma boa parte de sua qualidade ao carinho de Plínio Marcos
pelo mundo e submundo que ele
descrevia.
Um censor da época da ditadura
disse um dia a Plínio Marcos que sua
obra era subversiva porque continha palavrões. Plínio Marcos achou
estranho, pois ele usava palavrões
não para subverter, mas porque escrevia o diálogo de quem trabalha no
mercado e de quem conversa nas cadeias e nos puteiros. E não fazia isso
para denunciar nem para chocar,
mas porque esses eram os protagonistas das histórias que ele conhecia,
que lhe pareciam valer a pena e que
ele gostava de contar.
ccalligari@uol.com.br
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