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São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 2003

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"MANUAL PRÁTICO DO ÓDIO"

Ferréz volta à periferia em romance "firmeza"

MARCELO RUBENS PAIVA
ARTICULISTA DA FOLHA

O autor de "Capão Pecado" está de volta. O jovem escritor Ferréz, 27, colocou abaixo os muros do preconceito e entrou num mercado fechado e de poucas oportunidades, em especial para quem vem da "perifa".
Ele seguiu o caminho de Paulo Lins ("Cidade de Deus"), que, da favela, mandou sinais de sua alta literatura. Seguiu o caminho de outros proletários, como Lima Barreto e Plínio Marcos.
Passou a dar palestras, a escrever para sites e revistas, a ser convidado para festas da MTV. Foi absorvido, mas não se perdeu.
Três anos depois, lança o segundo romance, "Manual Prático do Ódio", mais profundo, mais bem escrito e, como não poderia deixar de ser, mais envolvente.
O livro aborda o universo da violência urbana com o refinamento de quem a conhece em detalhes. Tem aquela crueza dos primeiros contos de Rubem Fonseca, aquele de "Feliz Ano Novo". Sua violência não é alegórica. Narra a história de uma gangue ("firma") como deve ser narrada, sem preconceitos, humanizada.
Não são apenas bandidos sobrevivendo com arma em punho, aterrorizando a cidade gratuitamente. São sonhadores, amam, vingam-se, procuram um sentido para a vida e, sobretudo, planejam o futuro. "A única diferença entre os jovens que roubavam e os roubados era o muro social que divide o país", escreveu.
Régis, o protagonista, reclama que, se não gastasse tanto dinheiro com armas, ou melhor, "aplicasse", já poderia ter comprado um sítio para viver em paz com a família.
É um profissional, sabe corromper a PM, que "aceita qualquer mixaria", mata por encomenda, e sua ética é duvidosa. Gosta do barulho que um corpo faz quando cai baleado. Já matou uma ex-companheira. Sua atenção é o seu passaporte para a vida: o pensamento está 100% concentrado em maldade.
Como numa guerra de guerrilha, ninguém sabe onde ele mora, e todos são chamados de "jão" (que vem de "Manejão", que vem de "Mané"), para evitar o nome verdadeiro e dificultar a alcaguetagem.
Nego Duda, que uma vez pichou na parede de sua casa "é hora de me vingar, a fome virou ódio, e alguém tem que chorar", pede conselhos a Régis. Um sujeito encomendou por cinco paus a morte de outro. Régis aconselhou-o a pedir adiantado e trai o chegado, matando-o e ficando com o dinheiro.
Ele se junta a Lúcio Fé, Celso Capeta, Aninha, que, apesar do nome e da calcinha com ursinhos desenhados, anda com um revólver Rossi 38 na cintura, Mágico, quem bola o plano, e Neguinho da Mancha na Mão para a parada definitiva, o grande golpe: um assalto para pôr um ponto final em tanto vaivém.
Ferréz não vê na literatura apenas uma válvula de escape, também ambiciona, através dela, mudar a realidade em volta. "Sou um contador de histórias. Vivo no meu próprio tema. Assim é mais fácil escrever sobre a realidade daqui. Só quero mostrar, sem moralismos, que desse lado há outras vidas, que querem mudança, e que o mundo aqui é cruel."
"E noto que a coisa piorou muito nos últimos anos. Mudaram as gírias, aumentou a maldade. O desemprego tem levado muita gente ao desespero", diz.
Nos últimos anos, Ferréz tem estudado muito. Em cada palestra que dá, quando um autor é citado, ele anota e o lê. Leu Flaubert. Descobriu John Fante depois de ler Bukowski. "Um autor puxa o outro", diz. Considera tais escritores seu amigos, conversa com eles.
Filho de um motorista e uma empregada doméstica, continua morando no Capão, casou-se há um mês com Elaine, pintora, "uma mina firmeza", anda sempre acompanhado por figuras de lá, um truta, e continua circulando de busão ou lotação.
Militante, montou com amigos uma biblioteca no bairro, que fechou por falta de grana para o aluguel, organiza eventos culturais e, em novembro, lança o disco "Determinação", com participação de Arnaldo Antunes e Chico César. Firmeza total.

Manual Prático do Ódio


   
Autor: Ferréz
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 29,90 (256 págs.)



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