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NELSON ASCHER
Quantidade versus qualidade
Philip Larkin (1922-1985)
diz, na primeira estrofe de
um poema famoso, que "o sexo
começou em 1963 (meio tarde para mim) entre o fim da proibição
de "Lady Chatterley" e o primeiro
LP dos Beatles". Romance escrito
por seu conterrâneo D.H. Lawrence (1885-1930), "O Amante
de Lady Chatterley ", publicado
privadamente em Florença em
1928 e proscrito na Inglaterra devido ao conteúdo sexualmente
explícito, foi liberado no país em
1960, enquanto o primeiro LP dos
Beatles, "Please Please me", saiu
em 22 de março de 1963.
Sem dúvida o poeta inglês não
se refere ao ato em si, pois fazê-lo
sugeriria que, até então, nossa espécie se perpetuara por meio da
partenogênese, algo que, ao que
consta, ocorreu uma única vez.
Seu tema é o que antigamente
chamavam de "amor livre" e depois se celebrizou como revolução
sexual. Situar o fenômeno de modo tão preciso, malgrado a licença
poética, não é de todo incorreto,
pois a data mencionada, além de
coincidir com o aperfeiçoamento
de anticoncepcionais eficazes, encontra-se no centro do intervalo
epidemiológico que, durante quatro décadas (da descoberta dos
antibióticos à irrupção da Aids),
ajudara a torná-lo possível.
Com a revolução sexual, concomitantemente decorrência e consolidação da emancipação feminina, as mulheres passaram, de
fato e de direito, a poder dispor de
seu corpo da mesma maneira que
os homens. Se há algo mais surpreendente do que o desaparecimento súbito de obsessões milenares como a da virgindade, trata-se da amnésia histórica que leva as gerações recentes a ignorarem ou a subestimarem a novidade absoluta do que aconteceu.
Um desdobramento interessante desse processo foi a possibilidade de, contra o pano de fundo de
condições relativamente igualitárias, observar conforme vinham à
luz desigualdades mais enraizadas do que as impostas de fora.
Ainda há pouco era tabu afirmar que, no decorrer da evolução, homens e mulheres se programaram de maneiras distintas,
já que defender tal idéia seria
considerado uma tentativa de
reinstaurar a situação legal e social anterior. Livres de interdições, as diferenças em questão são
agora tema de investigações rigorosas. Entre as indicações de que
elas existem e são importantes, está a estranha persistência dos estigmas associados à mais antiga
das profissões.
Para a geração de meus pais e
avós, uma mulher que perdesse a
"honra" antes de se casar ou sem
se casar, que tivesse múltiplos
parceiros (nem necessariamente
simultâneos), que derivasse do
ato qualquer satisfação que não a
de procriar ou contentar o marido, já fazia jus ao epíteto. Atualmente, apesar de serem lançados
no atacado como ofensas, o termo
"prostituta" e seus infinitos sinônimos, quando seriamente usados, aplicam-se a uma atividade
profissional: a troca de alguns favores por uma quantia, de preferência à vista.
Das várias sanções impostas outrora às mulheres que rompiam
as normas, a mais comum se resumia na desvalorização pública
que, tornando-a inadequada ao
matrimônio, estendia-se à sua
progênie. Tal sanção continua
valendo para aquela que faça sexo por dinheiro. Por quê?
Não é evidente que tivesse de ser
assim. Se as atividades ditas íntimas converteram-se numa parte
normalizada da vida humana,
por que pô-las à venda seria diferente de comercializar o produto
das mãos ou do cérebro? Uma primeira resposta, remetendo-nos ao
preconceito antimercantil herdado do cristianismo pela esquerda,
não dá conta do problema. A
prostituição masculina somente
chega a ser socialmente condenada se, de caráter homossexual,
chama a atenção dos homófobos.
E a revolução sexual, que prometia desestigmatizar a prostituta,
inocentando-a sob o rótulo neutro de "fornecedora de serviços sexuais", não o fez.
Para Fiódor Pávlovitch, pai dos
irmãos Karamázov no romance
homônimo de Dostoiévski (1821-81), "não havia mulher feia". O
doutor Havel, protagonista de alguns contos do tcheco Milan Kundera (1929), "era como a morte",
ou seja, levava tudo o que achasse
pela frente. Giacomo Casanova
(1725-98) aconselhava os casanovas malsucedidos a reduzir o nível de exigência e redobrar seus
esforços. O prestígio masculino resultava da quantidade de conquistas e, como se constata nas
"Ligações Perigosas ", de Choderlos de Laclos (1741-1803), o visconde de Valmont se excitava
menos com a qualidade de suas
presas do que com a dificuldade
que elas lhe opunham. Aliás, é a
falta de dificuldade que diminui
diante de seus pares o homem que
recorre ao sexo pago.
Que uma prostituta seja também uma "mulher fácil" decerto
não conspira a seu favor e, entre
as mulheres, a fama de fácil deve
ser bem pior que a de simplesmente promíscua. Mais grave do
que a facilidade, no entanto, é a
transgressão de uma linha que se
interpõe entre a mulher que faz
concessões negociadas de suas
exigências qualitativas (por
exemplo, a funcionária que namora o chefe para obter um aumento ou a moça pobre que se casa com um milionário por causa
de seus milhões) e aquela que
abre integralmente mão delas.
Ao que tudo indica, 40 anos
após aquele que Larkin definiu
como o marco zero da revolução
sexual, cruzar a linha acima segue sendo, no juízo da sociedade,
uma viagem sem volta. As mulheres conquistaram uma liberdade
quantitativa, não qualitativa. Na
época de que fala o poema, Leila
Diniz (1945-72) expressou claramente essa distinção quando a
um sedutor rejeitado que lhe perguntara se, afinal, ela não era a
tal que dava para todo mundo, a
atriz carioca retrucou que dava,
sim, para todo mundo, mas não
para qualquer um.
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