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São Paulo, segunda-feira, 20 de outubro de 2003

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NELSON ASCHER

Quantidade versus qualidade

Philip Larkin (1922-1985) diz, na primeira estrofe de um poema famoso, que "o sexo começou em 1963 (meio tarde para mim) entre o fim da proibição de "Lady Chatterley" e o primeiro LP dos Beatles". Romance escrito por seu conterrâneo D.H. Lawrence (1885-1930), "O Amante de Lady Chatterley ", publicado privadamente em Florença em 1928 e proscrito na Inglaterra devido ao conteúdo sexualmente explícito, foi liberado no país em 1960, enquanto o primeiro LP dos Beatles, "Please Please me", saiu em 22 de março de 1963.
Sem dúvida o poeta inglês não se refere ao ato em si, pois fazê-lo sugeriria que, até então, nossa espécie se perpetuara por meio da partenogênese, algo que, ao que consta, ocorreu uma única vez. Seu tema é o que antigamente chamavam de "amor livre" e depois se celebrizou como revolução sexual. Situar o fenômeno de modo tão preciso, malgrado a licença poética, não é de todo incorreto, pois a data mencionada, além de coincidir com o aperfeiçoamento de anticoncepcionais eficazes, encontra-se no centro do intervalo epidemiológico que, durante quatro décadas (da descoberta dos antibióticos à irrupção da Aids), ajudara a torná-lo possível.
Com a revolução sexual, concomitantemente decorrência e consolidação da emancipação feminina, as mulheres passaram, de fato e de direito, a poder dispor de seu corpo da mesma maneira que os homens. Se há algo mais surpreendente do que o desaparecimento súbito de obsessões milenares como a da virgindade, trata-se da amnésia histórica que leva as gerações recentes a ignorarem ou a subestimarem a novidade absoluta do que aconteceu.
Um desdobramento interessante desse processo foi a possibilidade de, contra o pano de fundo de condições relativamente igualitárias, observar conforme vinham à luz desigualdades mais enraizadas do que as impostas de fora.
Ainda há pouco era tabu afirmar que, no decorrer da evolução, homens e mulheres se programaram de maneiras distintas, já que defender tal idéia seria considerado uma tentativa de reinstaurar a situação legal e social anterior. Livres de interdições, as diferenças em questão são agora tema de investigações rigorosas. Entre as indicações de que elas existem e são importantes, está a estranha persistência dos estigmas associados à mais antiga das profissões.
Para a geração de meus pais e avós, uma mulher que perdesse a "honra" antes de se casar ou sem se casar, que tivesse múltiplos parceiros (nem necessariamente simultâneos), que derivasse do ato qualquer satisfação que não a de procriar ou contentar o marido, já fazia jus ao epíteto. Atualmente, apesar de serem lançados no atacado como ofensas, o termo "prostituta" e seus infinitos sinônimos, quando seriamente usados, aplicam-se a uma atividade profissional: a troca de alguns favores por uma quantia, de preferência à vista.
Das várias sanções impostas outrora às mulheres que rompiam as normas, a mais comum se resumia na desvalorização pública que, tornando-a inadequada ao matrimônio, estendia-se à sua progênie. Tal sanção continua valendo para aquela que faça sexo por dinheiro. Por quê?
Não é evidente que tivesse de ser assim. Se as atividades ditas íntimas converteram-se numa parte normalizada da vida humana, por que pô-las à venda seria diferente de comercializar o produto das mãos ou do cérebro? Uma primeira resposta, remetendo-nos ao preconceito antimercantil herdado do cristianismo pela esquerda, não dá conta do problema. A prostituição masculina somente chega a ser socialmente condenada se, de caráter homossexual, chama a atenção dos homófobos. E a revolução sexual, que prometia desestigmatizar a prostituta, inocentando-a sob o rótulo neutro de "fornecedora de serviços sexuais", não o fez.
Para Fiódor Pávlovitch, pai dos irmãos Karamázov no romance homônimo de Dostoiévski (1821-81), "não havia mulher feia". O doutor Havel, protagonista de alguns contos do tcheco Milan Kundera (1929), "era como a morte", ou seja, levava tudo o que achasse pela frente. Giacomo Casanova (1725-98) aconselhava os casanovas malsucedidos a reduzir o nível de exigência e redobrar seus esforços. O prestígio masculino resultava da quantidade de conquistas e, como se constata nas "Ligações Perigosas ", de Choderlos de Laclos (1741-1803), o visconde de Valmont se excitava menos com a qualidade de suas presas do que com a dificuldade que elas lhe opunham. Aliás, é a falta de dificuldade que diminui diante de seus pares o homem que recorre ao sexo pago.
Que uma prostituta seja também uma "mulher fácil" decerto não conspira a seu favor e, entre as mulheres, a fama de fácil deve ser bem pior que a de simplesmente promíscua. Mais grave do que a facilidade, no entanto, é a transgressão de uma linha que se interpõe entre a mulher que faz concessões negociadas de suas exigências qualitativas (por exemplo, a funcionária que namora o chefe para obter um aumento ou a moça pobre que se casa com um milionário por causa de seus milhões) e aquela que abre integralmente mão delas.
Ao que tudo indica, 40 anos após aquele que Larkin definiu como o marco zero da revolução sexual, cruzar a linha acima segue sendo, no juízo da sociedade, uma viagem sem volta. As mulheres conquistaram uma liberdade quantitativa, não qualitativa. Na época de que fala o poema, Leila Diniz (1945-72) expressou claramente essa distinção quando a um sedutor rejeitado que lhe perguntara se, afinal, ela não era a tal que dava para todo mundo, a atriz carioca retrucou que dava, sim, para todo mundo, mas não para qualquer um.


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