São Paulo, sábado, 20 de outubro de 2007

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Crítica

Livro expõe autor assertivo e polêmico

FLÁVIO MOURA
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Na nota à segunda edição de seu estudo sobre o neoconcretismo, publicada em 1999, o crítico Ronaldo Brito manifesta o temor de que o movimento seja transformado em "imagem cívica". "Experiência Neoconcreta", a versão de Ferreira Gullar sobre o papel que desempenhou no grupo, dá sentido à afirmação. O livro reforça certa tendência da crítica a transformar o neoconcretismo num emblema e a consolidá-lo como marco fundador da arte contemporânea no Brasil.
A tese é a mesma dos artigos que publicou no "Jornal do Brasil" durante a gestação do movimento, entre o fim da década de 1950 e o início dos anos 1960. Os artistas neoconcretos teriam sido capazes de dar um passo adiante em relação às vanguardas construtivas européias ao superar a tela como suporte e instituir uma relação ativa entre a obra e o espectador. A diferença está no tom: Gullar se mostra mais assertivo do que nunca e segue disposto à polêmica.
Em continuidade à refrega que travou com Décio Pignatari há poucos meses nas páginas desta Folha, dedica as primeiras linhas a espezinhar os poetas concretos. Afirma que sem ele os irmãos Campos não teriam reconhecido o valor da obra de Oswald de Andrade, sugere que não tinham idéia formada sobre o conceito de símbolo e diz que uma das razões para seu afastamento do grupo foi a insistência dos concretos em escrever manifestos vazios, sem poemas capazes de lhes dar consistência.
As indicações a respeito de sua influência sobre os neoconcretos não são menos enfáticas. Em uma das afirmações mais controversas do livro, sustenta que os "Bichos", de Lygia Clark, são inspirados por seu livro-poema "Fruta", de formato semelhante e em seu entender o pioneiro na instituição da relação ativa entre obra e espectador. "Como os livros-poema nunca foram editados e, em 1961, afastei-me do grupo, dando outro rumo a meu trabalho poético, a verdadeira origem disso foi naturalmente atribuída a outros artistas neoconcretos, sem que se perguntasse como surgiu", escreve Gullar.
Sobra ainda espaço para identificar em seu "Poema Enterrado" o fundamento dos "Bólides", de Hélio Oiticica, e para encontrar no movimento neoconcreto as raízes das performances e instalações contemporâneas. As reações são inevitáveis e não devem tardar. Mas a polêmica é só uma dimensão do livro. O que mais chama a atenção no ensaio é a disposição de Gullar -no entender de boa parte da crítica literária o maior poeta brasileiro vivo- em voltar ao assunto. Se ele já é visto como o principal articulador teórico do neoconcretismo e tem assento garantido no panteão da poesia brasileira, para que o desgaste?
O ponto é que a cotação do neoconcretismo subiu em ritmo vertiginoso nos últimos tempos. A acolhida festiva das obras de Hélio Oiticica e Lygia Clark no exterior a partir dos anos 1990, a valorização crescente de Amilcar de Castro e uma inclinação visível na universidade e no jornalismo a mitificar os anos 1950, num paralelo entre as manifestações culturais da época e as promessas do nacional-desenvolvimentismo, contribuíram para fazer dos neoconcretos os agentes da "emancipação" da arte brasileira.
A publicação de "Experiência Neoconcreta" responde em parte a esse contexto. A ocasião é boa para reforçar essa versão heróica sobre o movimento, mesmo sob o risco de conferir um caráter doutrinário para seus pressupostos. Gullar, lembre-se, já teorizou copiosamente a respeito, a tal ponto que o novo livro leva a supor que os "excessos racionalistas" talvez não fossem exclusividade do grupo paulista. É certo que não existe crítica sem análise formal, e Gullar segue capaz de fazê-lo com a clareza e densidade de sempre. Mas o que há de novo no ensaio é a explicitação das disputas de que o neoconcretismo se tornou alvo. E pode estar nelas o caminho para uma compreensão mais equilibrada de seu legado.


EXPERIÊNCIA NEOCONCRETA: MOMENTO-LIMITE DA ARTE
Autor: Ferreira Gullar
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 68 (164 págs.)
Avaliação: bom



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