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Crítica/"O Terceiro Ausente - Ensaios e Discursos sobre a Paz e a Guerra"
Bobbio vê a guerra com prudência
Reunião de ensaios de filósofo italiano que chega ao Brasil não se pauta pelo encantamento nem pelo falso idealismo
ROBERTO ROMANO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A guerra é fato tremendo
lamentado por Empédocles de Agrigento,
Erasmo de Roterdã, Gandhi,
Einstein. Várias outras fontes
de luz ética tentaram atenuar
aquele traço, talvez essencial
no ser humano. Se em todas as
fórmulas da Justiça devemos
buscar dois elementos básicos,
o fato e o direito, na carnificina
bélica o primeiro ponto é indiscutível. O segundo atormenta
juristas e filósofos.
Norberto Bobbio alcança estatuto universal ao pensar a
guerra e a paz com prudência,
sem preconceitos pacifistas ou
apologia dos canhões.
A guerra é necessária? Sem
um pacto entre os indivíduos,
ação que instaura o Estado, ela
é inelutável porque natural. A
tese de Hobbes serve, ao longo
das reflexões de Bobbio, como
base para saber até onde a ordem política pode ser efetiva.
A resposta do mestre italiano
é cheia de matizes, como em todas as demais questões por ele
analisadas. Entre o fato bruto
(natural) da força física monopolizada pela máquina do Estado e o direito, é preciso cautela
para não cair nas ilusões da sonhada paz perpétua.
Nas lições sobre a "Filosofia
do Direito", Hegel afirma que,
para garantir a soberania do
Estado, os indivíduos devem
sacrificar seus bens e suas vidas, opiniões e tudo o que integra a sua existência na defesa
do coletivo ao qual pertencem:
a guerra evoca "um poder natural" comparada ao direito superior que o gênero possui diante
dos indivíduos. O Estado é o
correlato da "natureza" ou de
"uma natureza da vontade".
Esse juízo tem origem hobbesiana. Os Estados estão entre
si numa relação própria à luta
de todos contra todos. Entes artificiais, os Estados não encontram artífices cosmopolitas para fabricar um superestado máquina para lhes manter limites
"razoáveis". Hegel amplia a tese de Hobbes: guerras ocorrem
por qualquer motivo, vingança
ou vantagem, não é possível julgá-las pelo justo ou injusto.
Elas também significam explosões de vitalidade, como nas
hordas bárbaras contra os romanos, fortes externamente
mas apodrecidos na vida civil.
Esse é o núcleo de todos os
conflitos. "Muitas guerras surgem porque os homens se entediam na paz" ou porque a política deslancha para o exterior o
impulso (Trieb) do agir que, de
outro modo, voltar-se-ia para o
interior do país.
Na "Filosofia da História",
Hegel indica uma ausência: não
existe entre o Estado e os cidadãos, entre ele e os demais Estados, um juiz imparcial, justo,
honesto. A diplomacia, além de
prolongar a guerra por outros
meios, se caracteriza (para usar
a frase de A. Kojève) como "o
reino dos ladrões roubados".
É a semelhante problema
que Norberto Bobbio dedica "O
Terceiro Ausente". O elo que
falta, basta ter lido Hobbes e
Hegel, é o juiz do universo.
Antes da Segunda Guerra
Mundial, a Sociedade das Nações não desempenha tal mister, pois ela representa apenas
os que derrotaram a Alemanha.
Daquela ausência brotam os
nacionalismos doentios, os desejos de vingança que semeiam
os totalitarismos em terreno
alemão e italiano. Após a derrota do Eixo, surgem as Nações
Unidas. Estas, dificilmente podem ser identificadas ao juiz
supremo e imparcial sonhado
pelos beatos pacifistas.
Diz Bobbio em página central da coletânea: "O reconhecimento de veto a algumas grandes potências já é por si só a demonstração de que as Nações
Unidas, embora tendo dado um
passo adiante além da Sociedade das Nações, além da pura e
simples associação de Estados,
não deram origem a um superestado, vale dizer, àquela forma de convivência cujas características fundamentais são o
poder soberano, que consiste
no direito de não reconhecer
nenhuma potência superior
(pode reconhecer como iguais,
mas não como superiores), e o
monopólio da força legítima".
Frases mais claras e distintas,
realistas em sentido nobre, impossível.
Quem deseja conversar com
um sábio sobre assuntos essenciais escute as ponderações do
autor no presente livro. Da leitura não brota felicidade nem
encantamento nem idealismo
hipócrita. As páginas em foco
propiciam sólidos conceitos sobre o ente humano, perene
misto de brilho espiritual e bestialidade. O volume, bem preparado pelo Centro de Estudos
Norberto Bobbio, uma excelente instituição brasileira, tem
profunda introdução de Celso
Lafer, grande conhecedor, na
prática e na teoria, das espinhosas armadilhas espalhadas no
solo minado da ordem (ou desordem) internacional.
ROBERTO ROMANO é filósofo e professor titular de ética e filosofia política na Unicamp
O TERCEIRO AUSENTE - ENSAIOS E DISCURSOS SOBRE A PAZ E A GUERRA
Autor: Norberto Bobbio
Tradução: Daniela Beccaccia Versiani
Editora: Manole
Quanto: R$ 38 (368 págs.)
Avaliação: ótimo
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