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ARTIGO
Arte/Cidade 3 revela espaços esquecidos e invisíveis de São Paulo
LORENZO MAMMI
especial para a Folha
Desde a primeira exposição, no
antigo matadouro, o Arte/Cidade
procurou garimpar espaços que
estivessem de alguma forma esquecidos ou invisíveis -invisibilidade de significados, que não exclui uma visibilidade física gritante, como o Vale de Anhangabaú,
onde foi realizado o segundo bloco
do projeto.
O Arte/Cidade 2, de fato, tratava
de uma invisibilidade de superfície. O Arte/Cidade 3, ao contrário,
descobriu uma cidade morta nas
entranhas da cidade atual. O dado
que mais impressiona, nessas ruínas, é menos a monumentalidade
do que a proximidade de lugares
densamente frequentados.
Surpreende nunca termos visto
esses espaços, como não vemos os
trens que atravessam quotidianamente a cidade. À diferença de Rio
ou Salvador (para não falar das
metrópoles européias e norte-americanas), São Paulo é uma cidade cega, que não vê a si mesma. O
grande mérito do Arte/Cidade é
remexer nessa cegueira, cutucar a
amnésia coletiva, não tanto de um
ponto de vista documentário, mas
no plano do imaginário.
Ao trabalhar a cidade invisível
como objeto visual e não apenas
como história, faz com que ela seja
percebida como algo que está aqui
e agora, não só como signo do passado ou possibilidade no futuro. E
nos obriga, por tabela, a nos interrogarmos sobre o fato de nunca a
termos visto.
Contudo, o projeto parece-me
estar numa encruzilhada: até agora, apresentou-se como exposição
de arte, mas essa classificação torna-se sempre mais problemática.
A arte não é a única maneira de intervir visualmente num espaço,
embora tradicionalmente seja a
mais prestigiosa. Mesmo em suas
formas mais abertas (instalação,
"site specific", "land art"), a
obra de arte possui suas regras,
sem as quais simplesmente desaparece como objeto estético: quando se instala num espaço, chama-o
a si, faz dele o espaço da obra; e seu
significado pertence à história da
arte (às outras obras), mais do que
a um espaço ou a uma coletividade, ainda que possa incidir sobre
eles.
Nisso está sua autonomia, que
não pode ser revogada. Mas é isso,
justamente, que a torna difícil de
ser manuseada, quando o discurso
que se pretende fazer com ela não é
propriamente ou apenas estético.
O problema do Arte/Cidade 3, enquanto exposição de arte, não é a
falta de boas obras (há algumas,
embora não muitas, e pelo menos
duas bastante significativas): o
problema é que, se as obras fossem
outras, o significado da exposição
seria mais ou menos o mesmo.
Talvez isso se deva a uma evolução natural: à medida que avança,
o projeto adquire espessura, seu
sentido se solidifica. Por isso mesmo, o espaço de manobra dos artistas se estreita, e as possibilidades
de gerar um significado autônomo
se reduzem. Ou talvez a crise surja
por termos chegado, dessa vez, ao
cerne da questão: São Paulo não
nasceu de um conjunto de moradias, mas de uma empreitada industrial, que já embutia em si toda
a violência posterior.
A descoberta da cena do crime, a
exumação do cadáver é tão impactante que não deixa espaço para
comentários. As obras ficam à
margem. Quem sabe não seja o caso, em vista de um Arte/Cidade 4,
de mudar radicalmente de fórmula, pensar em algo que não seja
propriamente uma exposição, ainda que conte com a participação de
um ou outro artista.
No entanto, como disse, há pelo
menos dois artistas que conseguiram se inserir com autoridade no
projeto -não por serem necessariamente mais hábeis ou inspirados do que outros, mas por terem
linhas de pesquisas que os colocam
naturalmente na nova situação,
sem sacrifício nem soluções forçadas.
O primeiro é Nelson Félix, que
despontou recentemente como
um nome de peso nacional, com
duas esculturas que foram a melhor obra brasileira na última Bienal de São Paulo: naquela ocasião,
duas grandes formas suspensas de
mármore branco reproduziam seções do cérebro humano, mas, para um espectador desavisado, mais
lembravam dois cetáceos encalhados. No chão, abaixo delas, havia
fendas úmidas, como se daquelas
formas pingasse uma secreção capaz de corroer o concreto. Era um
trabalho baseado numa idéia do
orgânico como metamorfose, geração e degeneração contínua de
formas. A intervenção no Moinho
Central vai na mesma direção.
O Moinho é um edifício de seis
andares, de que sobraram pavimentos e vigas e quase nenhuma
parede. Do ponto de vista formal,
um prédio de múltiplos andares é
uma diagramação do vazio, uma
tentativa de reduzir o espaço aéreo
em paralelepípedos.
Num prédio em ruínas, o espaço
aéreo reconquista seus direitos: algumas divisões permanecem, mas
revelam toda sua precariedade; o
chão em que pisamos já não é tão
chão como antes. Nelson Félix recortou grandes quadrados de concreto em um dos pavimentos, e os
suspendeu por cabos de aço a poucos centímetros do chão do andar
de baixo. A sensação de alarme,
proporcionada pelo equilíbrio
precário das grandes massas de
concreto, mistura-se ao fascínio
pela multiplicação de perspectivas
que os recortes proporcionam, reproduzindo, na vertical, a mesma
fuga perspectiva que a derrubada
das paredes criou na horizontal. A
destruição da arquitetura, antes de
chegar ao mero informe, gera uma
multiplicação de possibilidades
formais -uma metástase perspectiva, como numa Prigione de
Piranesi.
A outra artista que alcançou êxito pleno foi Laura Vinci. Aqui também a estrutura da obra transgride
a estrutura do espaço, com sua divisão por pavimentos. Nesse caso,
porém, não há recortes brutais:
apenas um pequeno buraco, que
deixa cair um sutil fio de areia. No
andar de cima, a areia, amontoada
na curva redonda de uma duna,
abre-se progressivamente numa
cratera, escorrendo para o andar
de baixo. Uma construção em ruínas é uma construção que não
consegue mais estancar o tempo. A
areia é tempo enquanto erosão e
tempo enquanto ampulheta. Mas,
sobretudo, é tempo enquanto movimento que depende do vento, da
umidade, do peso variável dos
grãos e, no entanto, acaba criando
formas perfeitas pela sua própria
entropia, que equilibra e anula cada movimento com um movimento oposto.
Assim, o monte de areia torna-se
forma exemplar de contínuo temporal, em oposição ao edifício,
forma exemplar da descontinuidade da história. E a areia recobre esse cubo industrial com a mesma
regularidade inexorável e doce
com que já recobriu as pirâmides
do Egito. No fundo, a coluna de
areia que oscila ao vento no Moinho Central, medindo a distância
temporal entre teto e pavimento, é
uma versão mais incorpórea de
outros trabalhos da artista: listras
escuras que sugerem uma verticalidade possível ou serpenteiam no
chão, deixando adivinhar uma
curva invisível na atmosfera. De
fato, desde que começou a fazer esculturas, Laura Vince busca pontuações rítmicas do espaço vazio,
mais do que volumes construídos.
O êxito dos trabalhos de Nelson
Félix e Laura Vince se deve sobretudo, a meu ver, ao fato de terem
encarado o Moinho Central como
um problema formal e não apenas
como tema ou cenário. Assim, a
história do edifício insere-se numa
questão bem mais ampla: o contraste entre espaços ilimitados e
construídos, tempos infinitos e
descontínuos. O caráter individual
e histórico do lugar não se dilui por
isso -ao contrário, adquire maior
pungência. E a obra de arte cumpre a função que, afinal, lhe compete desde sempre: gerar identidade entre particular e universal.
Lorenzo Mammi, 40, é crítico de arte
Evento: Arte/Cidade 3
Onde: projeto de intervenção urbana entre
a estação da Luz e as indústrias Matarazzo
(entrada e estacionamento na av. Francisco
Matarazzo, 1.096), com obras de 37 artistas
Quando: de ter. a dom., das 12h às 21h.
Até 30 de novembro
Quanto: entrada franca
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