São Paulo, quarta-feira, 20 de novembro de 2002

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MARCELO COELHO

De como os corpos humanos se entrechocam e duplicam

Quem viu "2001 - Uma Odisséia no Espaço" não se esquece facilmente da imagem daquele feto gigantesco, pairando no espaço sideral, que encerrava o filme de Kubrick. Talvez a cena fosse mais memorável do que satisfatória do ponto de vista estético: para mim, ela surge como um emblema, uma colagem, um sinal desesperado na extremidade incompreensível da narrativa.
Logo em seguida, acendem-se as luzes, e a gente tem de sair da sala de projeção sem ter certeza do que significa aquilo: talvez por isso mesmo a imagem fique palpitando na memória.
É desse fundo escuro, meio cósmico, meio íntimo da memória que parecem surgir também as imagens de um vídeo do inglês Chris Cunningham em exibição no Paço das Artes (Cidade Universitária). Intitulado "flex", é uma peça de pouco mais de dez minutos de duração, em que vemos um homem e uma mulher nus, num ambiente completamente escuro, flutuando, sumindo, ocupando o primeiro plano, alternando-se no vazio, como se estivessem destituídos de qualquer ponto de apoio no espaço.
O resultado é visualmente impressionante: os corpos se encontram, se amam, se desencontram e se golpeiam com extrema violência. Torna-se difícil para o espectador saber em que momento estão deitados, ou de pé, ou voando, já que não se consegue nunca identificar o fundo de onde emergem. Ao mesmo tempo, a montagem do vídeo, elaborada e convulsiva, trombando e entrando em harmonia com a trilha sonora, sugere mais que estamos diante de um espetáculo de dança do que de uma obra ligada às artes visuais.
No final, em vez do feto, vemos o que parece ser um jato de sêmen pairando no espaço, iluminado, espectral, e é como se voltássemos a um momento em que o corpo humano não pertence ao estado sólido da matéria. Em todo o vídeo, aliás, o que se vê é isso: as imagens do homem e da mulher são duplicadas, distorcidas, violentadas, tornam-se objeto de agressões e desejos, sangram e se recuperam, numa espécie de liquefação da carne humana, que lembra tanto alguns mestres da pintura renascentista quanto os quadros de Francis Bacon.
O vídeo de Cunningham faz parte de uma mostra de nove trabalhos de arte contemporânea intitulada "Intimidade". O termo é bastante amplo para incluir, ao lado da exasperação quase caravaggesca, venérea, rebuscada e passional de "flex", o humor seco do brasileiro Marepe, que propõe, em outro ambiente, um "Casamento de Discos". Você escolhe um par de discos de vinil, dentre os vários expostos numa bancada, para que toquem simultaneamente em duas vitrolas. Ronnie Von e pagode, Gal Costa e sei lá quem, infernizam-se lado a lado, como uma dupla caipira feita de surdos.
Deus nos livre de um casamento assim. Mas a quase anulação de todo conflito, de todo contraste, de toda diferença, é também capaz de produzir efeitos muito inquietantes. A videoinstalação de Christoph Draeger projeta, sobre o que parece ser uma cortina de banheiro, a famosa cena do chuveiro de "Psicose" de Hitchcock -e, simultaneamente, por cima da original, também é projetada a cena equivalente do remake do filme, feito por Gus van Sant há alguns anos. Sangue e água em preto e branco se misturam ao sangue e à água coloridos, como se uma imagem fosse a dublagem da outra, dando ao espectador a vontade de afastar a cortina de plástico para encontrar o original.
E o que encontramos, no vídeo do francês Pierre Huyghe, é o "original de uma dublagem". O autor registra uma entrevista com uma senhora de seus 60 anos ou mais, que se notabilizou por ser a dubladora de Branca de Neve no desenho de Walt Disney. Abriu processo contra o estúdio, exigindo direitos autorais sobre o uso de sua própria voz. Ouvimos essa mulher cantando a música de Branca de Neve, mas nenhuma de suas declarações textuais: só as legendas de sua fala são exibidas, como que numa dublagem em terceiro grau...
Também nos trabalhos de Pipilotti Rist (uma paródia de videoclipe) e de Gustavo Rezende (imagens de frente e de costas do autor, ao lado de um caipira que parece saído do quadro de Almeida Júnior) encontramos as idéias de dublagem, replicação, dobra, "looping", frente-e-verso.
Mas voltando ao vídeo de Cunnigham e ao título da exposição, "Intimidades". Fiquei um pouco assustado com o contraste que, suponho, está em jogo ali. Vemos, em "flex", o desespero de uma intimidade feita de violência e de desejo, como se todos nós fôssemos bolas de bilhar se entrechocando no tabuleiro do genoma humano. Nas outras obras, a intimidade parece constituir-se somente com a reprodução de si mesmo sobre o outro: filme sobre filme, disco ao lado de disco, imagem espelhada em outra imagem, dublagem, repetição tendendo ao silêncio.
O íntimo deixaria de ser entendido como um lugar de refúgio, para ser o espaço onde encontramos ou nosso inimigo, ou o reflexo monótono de nós mesmos. Não sendo o ponto de encontro de duas singularidades humanas, o espaço "íntimo" estaria hoje ameaçado, devassado, exposto; parece ser iluminado pela luz branca de um banheiro ou pelas lâmpadas de um camarim: lugares que são menos de convívio do que de nudez e espelhamento. É bem perturbadora essa exposição.

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