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MARCELO COELHO
De como os corpos humanos se entrechocam e duplicam
Quem viu "2001 - Uma
Odisséia no Espaço" não se
esquece facilmente da imagem
daquele feto gigantesco, pairando
no espaço sideral, que encerrava o
filme de Kubrick. Talvez a cena
fosse mais memorável do que satisfatória do ponto de vista estético: para mim, ela surge como um
emblema, uma colagem, um sinal
desesperado na extremidade incompreensível da narrativa.
Logo em seguida, acendem-se
as luzes, e a gente tem de sair da
sala de projeção sem ter certeza
do que significa aquilo: talvez por
isso mesmo a imagem fique palpitando na memória.
É desse fundo escuro, meio cósmico, meio íntimo da memória
que parecem surgir também as
imagens de um vídeo do inglês
Chris Cunningham em exibição
no Paço das Artes (Cidade Universitária). Intitulado "flex", é
uma peça de pouco mais de dez
minutos de duração, em que vemos um homem e uma mulher
nus, num ambiente completamente escuro, flutuando, sumindo, ocupando o primeiro plano,
alternando-se no vazio, como se
estivessem destituídos de qualquer ponto de apoio no espaço.
O resultado é visualmente impressionante: os corpos se encontram, se amam, se desencontram
e se golpeiam com extrema violência. Torna-se difícil para o espectador saber em que momento
estão deitados, ou de pé, ou voando, já que não se consegue nunca
identificar o fundo de onde emergem. Ao mesmo tempo, a montagem do vídeo, elaborada e convulsiva, trombando e entrando
em harmonia com a trilha sonora, sugere mais que estamos diante de um espetáculo de dança do
que de uma obra ligada às artes
visuais.
No final, em vez do feto, vemos
o que parece ser um jato de sêmen
pairando no espaço, iluminado,
espectral, e é como se voltássemos
a um momento em que o corpo
humano não pertence ao estado
sólido da matéria. Em todo o vídeo, aliás, o que se vê é isso: as
imagens do homem e da mulher
são duplicadas, distorcidas, violentadas, tornam-se objeto de
agressões e desejos, sangram e se
recuperam, numa espécie de liquefação da carne humana, que
lembra tanto alguns mestres da
pintura renascentista quanto os
quadros de Francis Bacon.
O vídeo de Cunningham faz
parte de uma mostra de nove trabalhos de arte contemporânea intitulada "Intimidade". O termo é
bastante amplo para incluir, ao
lado da exasperação quase caravaggesca, venérea, rebuscada e
passional de "flex", o humor seco
do brasileiro Marepe, que propõe,
em outro ambiente, um "Casamento de Discos". Você escolhe
um par de discos de vinil, dentre
os vários expostos numa bancada, para que toquem simultaneamente em duas vitrolas. Ronnie
Von e pagode, Gal Costa e sei lá
quem, infernizam-se lado a lado,
como uma dupla caipira feita de
surdos.
Deus nos livre de um casamento
assim. Mas a quase anulação de
todo conflito, de todo contraste,
de toda diferença, é também capaz de produzir efeitos muito inquietantes. A videoinstalação de
Christoph Draeger projeta, sobre
o que parece ser uma cortina de
banheiro, a famosa cena do chuveiro de "Psicose" de Hitchcock
-e, simultaneamente, por cima
da original, também é projetada
a cena equivalente do remake do
filme, feito por Gus van Sant há
alguns anos. Sangue e água em
preto e branco se misturam ao
sangue e à água coloridos, como
se uma imagem fosse a dublagem
da outra, dando ao espectador a
vontade de afastar a cortina de
plástico para encontrar o original.
E o que encontramos, no vídeo
do francês Pierre Huyghe, é o
"original de uma dublagem". O
autor registra uma entrevista
com uma senhora de seus 60 anos
ou mais, que se notabilizou por
ser a dubladora de Branca de Neve no desenho de Walt Disney.
Abriu processo contra o estúdio,
exigindo direitos autorais sobre o
uso de sua própria voz. Ouvimos
essa mulher cantando a música
de Branca de Neve, mas nenhuma de suas declarações textuais:
só as legendas de sua fala são exibidas, como que numa dublagem
em terceiro grau...
Também nos trabalhos de Pipilotti Rist (uma paródia de videoclipe) e de Gustavo Rezende (imagens de frente e de costas do autor, ao lado de um caipira que parece saído do quadro de Almeida
Júnior) encontramos as idéias de
dublagem, replicação, dobra,
"looping", frente-e-verso.
Mas voltando ao vídeo de Cunnigham e ao título da exposição,
"Intimidades". Fiquei um pouco
assustado com o contraste que,
suponho, está em jogo ali. Vemos,
em "flex", o desespero de uma intimidade feita de violência e de
desejo, como se todos nós fôssemos bolas de bilhar se entrechocando no tabuleiro do genoma
humano. Nas outras obras, a intimidade parece constituir-se somente com a reprodução de si
mesmo sobre o outro: filme sobre
filme, disco ao lado de disco, imagem espelhada em outra imagem,
dublagem, repetição tendendo ao
silêncio.
O íntimo deixaria de ser entendido como um lugar de refúgio,
para ser o espaço onde encontramos ou nosso inimigo, ou o reflexo monótono de nós mesmos.
Não sendo o ponto de encontro de
duas singularidades humanas, o
espaço "íntimo" estaria hoje
ameaçado, devassado, exposto;
parece ser iluminado pela luz
branca de um banheiro ou pelas
lâmpadas de um camarim: lugares que são menos de convívio do
que de nudez e espelhamento. É
bem perturbadora essa exposição.
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