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DVDS
"CARL TH. DREYER"
Coleção reúne obras-primas, filmes históricos e extras
Diretor dinamarquês faz ode à beleza através do martírio
CÁSSIO STARLING CARLOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Na história do cinema, muito
se cria, mas a forma mais comum de expressão é a reciclagem
de temas e técnicas, seja as já experimentadas em outras artes, seja as inspiradas em filmes do passado. O culto hoje a um cineasta
do porte de Lars von Trier pode
ganhar em lucidez quando se tem
à mão a coleção "Carl Th. Dreyer", lançada pela Magnus Opus.
Pois Dreyer paira como um fantasma sobre Von Trier, que recicla sem pudores os filmes do mestre dinamarquês sem que muitos
de seus fãs nem se dêem conta da
existência prévia desse "pai ausente". De fato, ele freqüentava
pouco até os obscuros cineclubes.
Agora não há mais desculpas.
Quem ama "Ondas do Destino"
vai poder identificá-lo como uma
refilmagem de "A Palavra". Os sofrimentos de Björk em "Dançando no Escuro" já estavam em "O
Martírio de Joana d'Arc". Os tormentos que Von Trier impõe a
Grace soam pueris se comparados aos das protagonistas dreyerianas. Mas um bom dia de chuva
pode revelar muito mais belezas
do que esses jogos de charada.
A edição está lotada de extras
úteis, com curtas, textos analíticos
e extratos de entrevistas. Recomenda-se deixar para o final, para
poupar as surpresas, o documentário "Radiografia da Alma", em
que colaboradores revelam o que
sabem do mito Dreyer.
"A Quarta Aliança da Sra. Margarida" (1920) e "Mikael" (1924)
são curiosidades históricas. Neles,
já se identifica a obsessão de Dreyer pelo misticismo e pela morte,
além da construção plástica sem
reparos, mas ambos se tornam
obras menores diante das obras-primas que integram a coleção.
"O Martírio de Joana d'Arc" é a
primeira. Com base nos autos do
processo de julgamento da mártir
francesa, ele constrói um filme
quase todo em closes. Falconetti,
a atriz que encarna Joana d'Arc,
entregou-se ao trabalho duro (18
meses de filmagens), sujeitando-se às exigências impostas por Dreyer. O que se vê é um assombro de
transformação do sofrimento físico em realismo psicológico, com
os rostos metamorfoseados em
monumentos carregados de
transcendência, puro afeto.
Com "Dias de Ira", de 1943,
Dreyer mostra resultados plásticos ainda mais espetaculares, com
cenas que se parecem com quadros de Rembrandt em movimento e um uso da luz numa fotografia contrastada que só perde
em magnitude para o que vai alcançar no filme seguinte.
Em mais uma história de perseguição religiosa, o que interessa
desta vez é a ambigüidade humana essencial. Carne e espírito não
disputam mais espaços, misturam-se no desejo e na salvação, na
morte e na destruição. "Dias de
Ira" é também um filme político,
feito durante a ocupação nazista
da Dinamarca, e pode ser lido como uma metáfora da situação,
mas isso não esgota sua beleza.
Mais de uma década depois, vai
alcançar a maior obra-prima em
"A Palavra". Impregnado de misticismo, é uma experiência radical
do cinema como criação de uma
verdade autônoma, tão ou mais
poderosa que a oferecida por artes plásticas, literatura ou teatro.
Um aspirante a pastor, tornado
louco pelo excesso de leituras de
Kierkegaard, crê ser Jesus e capaz
de milagres, como a ressurreição
dos mortos. Muito antes da invenção dos efeitos especiais, o cinema tinha essa capacidade de
provocar crenças. Pois a loucura
de seu personagem não é menor
do que a elevação que Dreyer produz nos espectadores, transformados em crentes exclusivamente através do poder de sua visão.
A última bolacha do pacote é
"Gertrud", testamento e derradeira homenagem ao martírio como
forma de transcendência humana. Aqui, sob a forma de paixão,
mulher de advogado busca fora
da normalidade do casamento essa experiência de perda de si. Nas
mãos desse gênio, que sujeitou
Joana d'Arc a outro sacrifício, seu
martírio não será menor.
Carl Th. Dreyer
Direção: Carl Theodor Dreyer
Distribuidora: Magnus Opus; R$ 160
(com quatro DVDs) e R$ 120 (com três)
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