São Paulo, domingo, 20 de novembro de 2005

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DVDS

"CARL TH. DREYER"

Coleção reúne obras-primas, filmes históricos e extras

Diretor dinamarquês faz ode à beleza através do martírio

CÁSSIO STARLING CARLOS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Na história do cinema, muito se cria, mas a forma mais comum de expressão é a reciclagem de temas e técnicas, seja as já experimentadas em outras artes, seja as inspiradas em filmes do passado. O culto hoje a um cineasta do porte de Lars von Trier pode ganhar em lucidez quando se tem à mão a coleção "Carl Th. Dreyer", lançada pela Magnus Opus.
Pois Dreyer paira como um fantasma sobre Von Trier, que recicla sem pudores os filmes do mestre dinamarquês sem que muitos de seus fãs nem se dêem conta da existência prévia desse "pai ausente". De fato, ele freqüentava pouco até os obscuros cineclubes.
Agora não há mais desculpas. Quem ama "Ondas do Destino" vai poder identificá-lo como uma refilmagem de "A Palavra". Os sofrimentos de Björk em "Dançando no Escuro" já estavam em "O Martírio de Joana d'Arc". Os tormentos que Von Trier impõe a Grace soam pueris se comparados aos das protagonistas dreyerianas. Mas um bom dia de chuva pode revelar muito mais belezas do que esses jogos de charada.
A edição está lotada de extras úteis, com curtas, textos analíticos e extratos de entrevistas. Recomenda-se deixar para o final, para poupar as surpresas, o documentário "Radiografia da Alma", em que colaboradores revelam o que sabem do mito Dreyer.
"A Quarta Aliança da Sra. Margarida" (1920) e "Mikael" (1924) são curiosidades históricas. Neles, já se identifica a obsessão de Dreyer pelo misticismo e pela morte, além da construção plástica sem reparos, mas ambos se tornam obras menores diante das obras-primas que integram a coleção.
"O Martírio de Joana d'Arc" é a primeira. Com base nos autos do processo de julgamento da mártir francesa, ele constrói um filme quase todo em closes. Falconetti, a atriz que encarna Joana d'Arc, entregou-se ao trabalho duro (18 meses de filmagens), sujeitando-se às exigências impostas por Dreyer. O que se vê é um assombro de transformação do sofrimento físico em realismo psicológico, com os rostos metamorfoseados em monumentos carregados de transcendência, puro afeto.
Com "Dias de Ira", de 1943, Dreyer mostra resultados plásticos ainda mais espetaculares, com cenas que se parecem com quadros de Rembrandt em movimento e um uso da luz numa fotografia contrastada que só perde em magnitude para o que vai alcançar no filme seguinte.
Em mais uma história de perseguição religiosa, o que interessa desta vez é a ambigüidade humana essencial. Carne e espírito não disputam mais espaços, misturam-se no desejo e na salvação, na morte e na destruição. "Dias de Ira" é também um filme político, feito durante a ocupação nazista da Dinamarca, e pode ser lido como uma metáfora da situação, mas isso não esgota sua beleza.
Mais de uma década depois, vai alcançar a maior obra-prima em "A Palavra". Impregnado de misticismo, é uma experiência radical do cinema como criação de uma verdade autônoma, tão ou mais poderosa que a oferecida por artes plásticas, literatura ou teatro.
Um aspirante a pastor, tornado louco pelo excesso de leituras de Kierkegaard, crê ser Jesus e capaz de milagres, como a ressurreição dos mortos. Muito antes da invenção dos efeitos especiais, o cinema tinha essa capacidade de provocar crenças. Pois a loucura de seu personagem não é menor do que a elevação que Dreyer produz nos espectadores, transformados em crentes exclusivamente através do poder de sua visão.
A última bolacha do pacote é "Gertrud", testamento e derradeira homenagem ao martírio como forma de transcendência humana. Aqui, sob a forma de paixão, mulher de advogado busca fora da normalidade do casamento essa experiência de perda de si. Nas mãos desse gênio, que sujeitou Joana d'Arc a outro sacrifício, seu martírio não será menor.


Carl Th. Dreyer
    
Direção: Carl Theodor Dreyer
Distribuidora: Magnus Opus; R$ 160 (com quatro DVDs) e R$ 120 (com três)



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