São Paulo, segunda-feira, 20 de novembro de 2006

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O outro Afeganistão

Em "Cartas de Herat", a correspondente Christina Lamb retrata o país como terra de beleza e poesia e questiona a visão do best-seller "O Livreiro de Cabul"

Divulgação
Imagem que integra edição ilustrada de "O Caçador de Pipas", que sai agora no Brasil


EDUARDO SIMÕES
DA REPORTAGEM LOCAL

Musa inspiradora de Paulo Coelho para compor o personagem principal de "O Zahir", a correspondente de guerra inglesa Christina Lamb, 45, que conhece a fundo a realidade do Afeganistão, hesita antes de comentar como o país é descrito por sua colega Asne Seierstad em "O Livreiro de Cabul".
Lamb diz conhecer e gostar da jornalista e de Shah Muhammad Rais, nome verdadeiro do livreiro. Para ela, a obra é "extremamente comovente", com uma "maravilhosa percepção" da sociedade patriarcal afegã.
Mas Lamb tem restrições. "Não é verdade que ele [o livreiro] não educou seus filhos, e suas mulheres negam o que foi escrito sobre elas", diz Lamb à Folha. "Os afegãos são muito hospitaleiros, sempre convidam você para suas casas, para compartilhar sua comida, mesmo quando não têm nada. Suponho que Seierstad tirou vantagem da hospitalidade de Rais.
E sou cética em relação a algumas conversas recriadas, porque ela não fala dari ou pashto, e duvido muito que mulheres afegãs confessariam coisas tão íntimas a uma ocidental."

Em 2002, visão otimista
Lamb, como Seierstad, começou muito cedo no árido ofício de correspondente de guerra. Aos 21 anos, a jornalista viajou pelo Afeganistão com os mujahidin (guerrilheiros que lutavam contra a invasão russa). Testemunhou (e reportou sobre) a invasão soviética no país e a ascensão do regime Taleban e, logo após os ataques de 11 de setembro, resolveu voltar ao país. Para escrever um livro.
"Foi fascinante ver o que aconteceu a todas as pessoas que conheci. Algumas se tornaram talebans. Hamid Karzai virou presidente. Achei que seria interessante escrever sobre o assunto. O Afeganistão era retratado pela maior parte da imprensa através de homens com barbas e armas, numa terra empoeirada, e eu conhecia um país diferente, um lugar de beleza e poesia, que eu queria mostrar."
"Cartas de Herat" foi lançado em 2002. O livro, que chega agora ao Brasil, pegando carona no sucesso de "O Caçador de Pipas" e "O Livreiro", é assumidamente otimista, apesar das descrições da destruição do Afeganistão, da tortura etc.
Lamb descreve a face pálida e desbotada de um país que sempre sofreu por conta de sua posição geográfica ("ponto de encontro entre o Oriente Médio, a Ásia Central, a Índia e o Oriente- e, portanto, campo de batalha de grandes potências"). Mas empresta cores ao quadro ao descrever os mujahidin ("homens corajosos com expressões nobres") e o país ("uma terra onde a população aprendeu a sentir no ar o aroma da primeira neve nas montanhas e onde uma hora passada admirando as flores era uma hora ganha, não perdida").
O livro fala também de um achado da jornalista, fruto da correspondência que troca com uma afegã, Marri, filha de um diplomata com uma professora de inglês. Trata-se do Círculo da Agulha de Ouro, na cidade de Herat, onde mulheres, sob o disfarce de alunas de costura, aprendem "crítica literária, estética e poesia persa, além de serem apresentadas aos clássicos estrangeiros como Shakespeare, James Joyce e Nabokov". Sem burcas.
"As afegãs querem o mesmo que nós. Marri escreve sobre seu desejo de usar o vestido de seda vermelha que pertencia à mãe, de nadar nos lagos, de ir ao cinema", conta a autora.

Em 2006, pessimismo
Lamb, no entanto, perdeu boa parte do otimismo que carregava nas tintas, em 2002. A jornalista esteve há duas semanas no Afeganistão e se diz "deprimida" porque as pessoas já falam abertamente de uma volta dos talebans ao poder.
Lamb acredita que o maior erro do Ocidente -leia-se Estados Unidos- foi nunca ter compreendido a natureza tribal da sociedade afegã. A jornalista duvida que o país venha a ser totalmente pacífico. Sempre há disputas entre tribos e Cabul nunca controlou o país inteiro. "Infelizmente, há muitas pessoas interessadas na instabilidade, sejam os senhores da guerra, os talebans, a inteligência paquistanesa ou os envolvidos no tráfico de ópio."

CARTAS DE HERAT
Autora:
Christina Lamb
Editora: Novo Século
Quanto: R$ 39 (336 págs.)


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