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NELSON ASCHER
Olhos nos olhos dos andróides
Os efeitos de "Blade Runner", como sua estética, se tornaram símbolo dos anos 80
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POUCAS SEMANAS após sua estréia, "Blade Runner - O Caçador de Andróides" (1982) já era o filme mais comentado pelos cinéfilos nacionais daquela época e,
alcançado rapidamente o estatuto
de "cult movie", continua, até hoje, a
ser uma das produções mais discutidas da história do cinema
"Blade Runner" se popularizou de
início (pelo menos em São Paulo)
devido antes a espectadores que,
após entrarem no cinema sem saber
o que os aguardava e esperando uma
obra convencional de ficção científica, saíam de lá boquiabertos e o recomendavam, de imediato, aos amigos. Isto, mais que a publicidade ou a
crítica em jornais e revistas, é que,
fazendo dele o assunto das conversas, garantiu seu sucesso.
Requer hoje em dia certo esforço
de memória, recordar que, na virada
dos anos 70/80, o cinema americano, desdenhosamente considerado
"comercial" então, relegado pelos
entendidos de plantão a uma categoria inferior à do "cinema de arte"
ou das obras cujos diretores eram famosos e venerados (Buñuel, Fellini,
Bergman, Kurosawa), passou por
uma transformação revolucionária
graças a diversos saltos tecnológicos, à incorporação de novos temas
diferentemente abordados e, sobretudo, pela entrada no mercado de
outra geração de diretores, roteiristas e atores.
A reunião desses elementos, subitamente materializada numa obra
como "Blade Runner", pegou de surpresa inclusive o público bem informado. Fosse apenas isto, porém, não
teria se patenteado sua durabilidade
ou longevidade. Ocorre que essa foi
também a época em que se difundiu
o uso do videocassete e ainda era
possível alugar cópias importadas
do filme, que não apenas sobrevivia
a suas diversas repetições caseiras,
mas convidava igualmente a ser
acompanhado atentamente, com o
controle remoto em mão.
Daí que logo se tenha percebido
que a criação de Ridley Scott dialogava com um filme anterior, que não
havia causado menos sensação:
"2001 Uma Odisséia no Espaço". À
utopia clara, branca e higiênica de
Stanley Kubrick, o diretor mais jovem respondia com uma distopia
poluída, chuvosa e escura. O centro
de ambas as tramas era, no entanto,
ocupado pelo mesmo tipo de personagem: uma inteligência artificial
que, destinada a auxiliar seus criadores humanos, revolta-se contra
eles. Embora o gigantesco "cérebro
eletrônico" do primeiro retorne, no
filme seguinte, sob a forma de organismos vivos, ainda assim é a mesma
pergunta que se coloca, a saber:
quando é que a mera inteligência,
convertendo quantidade em qualidade, se humaniza e adquire vontade própria?
O tema, é claro, remonta ao "Frankenstein" (nome, aliás, do criador,
não da criatura) escrito no princípio
do século 19 por Mary Shelley, livro
que, por seu turno, não deixa de ser a
versão moderna, científico-industrial, seja do mito grego de Prometeu, seja da própria história bíblica
do homem que, cometendo o pecado original da desobediência, acaba
expulso por Deus do Paraíso. Cada
andróide do filme é um Adão e um
Prometeu, melhor em quase tudo
que seu inventor e os demais humanos de verdade, mas revoltados por
terem sido condenados a uma vida
tão curta que faz a humana se assemelhar à imortalidade.
Os efeitos especiais de "Blade
Runner", assim como toda sua estética visual, bastante criticada na
época por parecer "publicitária",
não foram menos inovadores e se
tornaram, por assim dizer, simbólicos dos anos 80. Acrescente-se que o
futuro próximo sugerido ali tem
mais a ver com nossa atualidade do
que aquele preconizado por Kubrick
e a obra ganha, retrospectivamente,
uma aura quase profética.
E, tal qual tantos filmes rebuscados, este é, a seu modo, uma discussão acerca da arte cinematográfica,
um exemplo de meta-cinema ou de
cinema sobre cinema que se realiza,
no entanto, de forma substancialmente mais sutil do que os produtos
europeus com os quais competia.
Pois, entre tantas outras coisas, a
obra de Ridley Scott "fala" incessantemente sobre o olhar. E, enquanto
nós a assistimos, olhos e mais olhos
aparecem e se multiplicam na tela,
olhando-nos. Os olhos do filme estão em toda parte: os andróides são
reconhecíveis por meio de um exame de retina; eles matam suas vítimas furando ou espremendo seus
olhos; o principal andróide, conforme agoniza, com suas lágrimas misturando-se à chuva, relata aquilo
que viu.
Seu recente lançamento em DVD
é a oportunidade para vê-lo e/ou revê-lo de modo a continuar uma discussão que não vai se encerrar tão
cedo.
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