São Paulo, sexta, 20 de novembro de 1998

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FORNADA DO MILÊNIO
Os ignorantes

GERALD THOMAS
em Brasília

Há três semanas, ao sair de Nova York, com saudade do Brasil, jamais me imaginei nesta situação. Exposto a esse festival grotesco de ignorância que o Brasil está vivendo, encontro-me no meio da madrugada, sentado num bar de hotel em Brasília, cabisbaixo, deprimido e louco para berrar. Por que estou aqui?
Na mesa ao lado, clones do PC Farias e suas respectivas mulheres se dão as mãos e fecham os olhos. "Que Jesus, nosso Senhor...", agradecem eles por mais um conchavo conseguido aqui na capital.
As mulheres enxugam as lágrimas, e os homens brindam. Distante, a TV mostra imagens do padre cantante, da Carla Perez, do Ratinho, do Leão, da Xuxa e dos corpos decepados que pontuam os programas vespertinos. É o fim do mundo. Tudo de uma vez! Quando vem, a escrotália vem toda de uma só vez.
Imagino que, encravados nos painéis modernosos da arquitetura caricata e nefasta desta capital (caindo aos pedaços), os dirigentes do país acordem todas as manhãs com os pulmões cheios de ódio do mundo e da nação que governam.
Brasília virou uma permanente feira da providência dos horrores, das síndromes que não deixam que esse país saia da miséria e da ignorância permanente. De que adiantam pequenos oásis de cultura no Rio ou em São Paulo ou pequenos guetos intelectuais em outras capitais brasileiras?
Aqui no DF, ganha-se a impressão de que a cultura morreu de vez para os brasileiros e a bandalheira e a pilantragem chegaram para ficar. Como fazer? Bombas de novo? Não, claro que não. Mas o quê? Como responder?
Na verdade, o desfile de ignorâncias havia começado no próprio aeroporto de Nova York, no balcão de check in para o Brasil. "Poxa, moço! Será que não dá pra dar um jeitinho?", reclamava um rapaz com a cara repleta de espinhas.
Debruçado sobre o balcão da primeira classe do vôo para o Rio, a voz alta do rapaz (filho de um dos mais notáveis cirurgiões plásticos brasileiros -e um dos homens mais ricos do mundo) não economizava palavras para não ter de pagar o excesso de bagagem: "Meu pai voa o tempo todo nessa empresa! Não dá pra quebrar esse galho?". O balconista, bravamente resistindo às golfadas do pequeno escrotismo brasileiro, defendia a posição da empresa com vigor: "Desculpe-me, meu senhor, mas terei que cobrar do senhor" (tratava-se de uma caixa com dezenas de bolinhas de golfe ou de tênis).
"Será que a empresa está tão pobre que não pode abrir mão de US$ 80?", provocava, ironicamente, o rapaz da pele oleosa. O balconista, mordendo o lábio inferior, conseguiu manter sua posição e não devolveu a ironia como deveria.
A resposta deveria ter sido: "E o senhor? O senhor é tão pobre que não pode pagar o seu excesso de bagagem de US$ 80?". Eu ainda não tinha embarcado para o Brasil, mas os vícios da classe dominante deste país que mantém o recorde mundial em desnível social já se exibiam no hall de embarque do JFK. Não, nada de novo. Apenas lamento a ignorância.
Crise, crise, crise. Em todos os departamentos, em todos os setores, seja na economia ou na cultura, só se ouve falar em crise. Ninguém sabe onde ela origina e ninguém conhece sua fisionomia.
Mas, fora a realidade econômica internacional, fora o crash da economia asiática e do resto do mundo, a palavra crise desculpa muita coisa. "Crise" acaba virando um clichê, um período de férias, uma espécie de temporada no inferno que desculpa e endossa as maiores atrocidades e vulgaridades, assim como as imagens que infestam a TV brasileira.
O que eu vejo no Brasil de hoje nada tem a ver com a criativa crise de fim de século ou virada de milênio. Quem lucra com a crise brasileira são os salafrários que pregam e cantam o fim do mundo, o apocalíptico fim ignorante do mundo e os donos de TV que apostam na ignorância de seus telespectadores. E essa população, meu santo deus, e essa população que levanta os braços e saúda as mais calhordas formas de bezerro de ouro? É a crença dos patifes! É o fim do mundo!
Mas, num palco carioca, a ignorância é muito engraçada. Brilhante (de dar inveja), o autor e ator Pedro Cardoso sintetiza e interpreta a tão enigmática "entidade brasileira", patife, canalha e pobre-coitada como jamais vi.
Sua peça "Os Ignorantes" traz à tona a jornada alucinante e improvável de destinos que compõem um mundo cão e, num território fantástico com a prosa de Paul Auster, se cruzam e provocam acidentes e tragédias sádicas e autopiedosas. Pedro Cardoso é um dos mais brilhantes comediantes que eu já vi. Não. Ele é mais que isso. É um dos mais brilhantes atores que já vi. Não sei nem se "atua" ou finge "receber" suas entidades com formação na sarjeta do fim do mundo.
Só sei que, como diretor, eu não consegui desvendar o mistério de sua interpretação. Com o corpo flexionado e os olhos fechados, em pé no centro do palco, ele se transforma numa faca tão cortante quanto a língua de Lenny Bruce ou encarna a emoção pura de Billie Holliday. Pedro Cardoso é um repentista, um clown, um clone que "surta" em cima das emoções-chave que definem o brasileiro inocente -inútil, violento e romântico do fim de século, do fim do mundo.
Sentado aqui, neste bar em Brasília, eu dava tudo para bater um papo com ele.
²

E-mail: geraldthomas@uol.com.br




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