|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FORNADA DO MILÊNIO
Os ignorantes
GERALD THOMAS
em Brasília
Há três semanas, ao sair de
Nova York, com saudade do
Brasil, jamais me imaginei nesta situação. Exposto a esse festival grotesco de ignorância
que o Brasil está vivendo, encontro-me no meio da madrugada, sentado num bar de hotel
em Brasília, cabisbaixo, deprimido e louco para berrar. Por
que estou aqui?
Na mesa ao lado, clones do
PC Farias e suas respectivas
mulheres se dão as mãos e fecham os olhos. "Que Jesus, nosso Senhor...", agradecem eles
por mais um conchavo conseguido aqui na capital.
As mulheres enxugam as lágrimas, e os homens brindam.
Distante, a TV mostra imagens
do padre cantante, da Carla
Perez, do Ratinho, do Leão, da
Xuxa e dos corpos decepados
que pontuam os programas
vespertinos. É o fim do mundo.
Tudo de uma vez! Quando
vem, a escrotália vem toda de
uma só vez.
Imagino que, encravados nos
painéis modernosos da arquitetura caricata e nefasta desta
capital (caindo aos pedaços),
os dirigentes do país acordem
todas as manhãs com os pulmões cheios de ódio do mundo
e da nação que governam.
Brasília virou uma permanente feira da providência dos
horrores, das síndromes que
não deixam que esse país saia
da miséria e da ignorância permanente. De que adiantam pequenos oásis de cultura no Rio
ou em São Paulo ou pequenos
guetos intelectuais em outras
capitais brasileiras?
Aqui no DF, ganha-se a impressão de que a cultura morreu de vez para os brasileiros e
a bandalheira e a pilantragem
chegaram para ficar. Como fazer? Bombas de novo? Não, claro que não. Mas o quê? Como
responder?
Na verdade, o desfile de ignorâncias havia começado no
próprio aeroporto de Nova
York, no balcão de check in para o Brasil. "Poxa, moço! Será
que não dá pra dar um jeitinho?", reclamava um rapaz
com a cara repleta de espinhas.
Debruçado sobre o balcão da
primeira classe do vôo para o
Rio, a voz alta do rapaz (filho
de um dos mais notáveis cirurgiões plásticos brasileiros -e
um dos homens mais ricos do
mundo) não economizava palavras para não ter de pagar o
excesso de bagagem: "Meu pai
voa o tempo todo nessa empresa! Não dá pra quebrar esse galho?". O balconista, bravamente resistindo às golfadas do pequeno escrotismo brasileiro,
defendia a posição da empresa
com vigor: "Desculpe-me, meu
senhor, mas terei que cobrar do
senhor" (tratava-se de uma
caixa com dezenas de bolinhas
de golfe ou de tênis).
"Será que a empresa está tão
pobre que não pode abrir mão
de US$ 80?", provocava, ironicamente, o rapaz da pele oleosa. O balconista, mordendo o
lábio inferior, conseguiu manter sua posição e não devolveu
a ironia como deveria.
A resposta deveria ter sido: "E
o senhor? O senhor é tão pobre
que não pode pagar o seu excesso de bagagem de US$ 80?".
Eu ainda não tinha embarcado
para o Brasil, mas os vícios da
classe dominante deste país
que mantém o recorde mundial em desnível social já se exibiam no hall de embarque do
JFK. Não, nada de novo. Apenas lamento a ignorância.
Crise, crise, crise. Em todos os
departamentos, em todos os setores, seja na economia ou na
cultura, só se ouve falar em crise. Ninguém sabe onde ela origina e ninguém conhece sua fisionomia.
Mas, fora a realidade econômica internacional, fora o
crash da economia asiática e
do resto do mundo, a palavra
crise desculpa muita coisa.
"Crise" acaba virando um clichê, um período de férias, uma
espécie de temporada no inferno que desculpa e endossa as
maiores atrocidades e vulgaridades, assim como as imagens
que infestam a TV brasileira.
O que eu vejo no Brasil de hoje nada tem a ver com a criativa crise de fim de século ou virada de milênio. Quem lucra
com a crise brasileira são os salafrários que pregam e cantam
o fim do mundo, o apocalíptico
fim ignorante do mundo e os
donos de TV que apostam na
ignorância de seus telespectadores. E essa população, meu
santo deus, e essa população
que levanta os braços e saúda
as mais calhordas formas de
bezerro de ouro? É a crença dos
patifes! É o fim do mundo!
Mas, num palco carioca, a ignorância é muito engraçada.
Brilhante (de dar inveja), o autor e ator Pedro Cardoso sintetiza e interpreta a tão enigmática "entidade brasileira", patife, canalha e pobre-coitada
como jamais vi.
Sua peça "Os Ignorantes"
traz à tona a jornada alucinante e improvável de destinos
que compõem um mundo cão e,
num território fantástico com
a prosa de Paul Auster, se cruzam e provocam acidentes e
tragédias sádicas e autopiedosas. Pedro Cardoso é um dos
mais brilhantes comediantes
que eu já vi. Não. Ele é mais
que isso. É um dos mais brilhantes atores que já vi. Não sei
nem se "atua" ou finge "receber" suas entidades com formação na sarjeta do fim do
mundo.
Só sei que, como diretor, eu
não consegui desvendar o mistério de sua interpretação.
Com o corpo flexionado e os
olhos fechados, em pé no centro
do palco, ele se transforma numa faca tão cortante quanto a
língua de Lenny Bruce ou encarna a emoção pura de Billie
Holliday. Pedro Cardoso é um
repentista, um clown, um clone
que "surta" em cima das emoções-chave que definem o brasileiro inocente -inútil, violento e romântico do fim de século, do fim do mundo.
Sentado aqui, neste bar em
Brasília, eu dava tudo para bater um papo com ele.
²
E-mail: geraldthomas@uol.com.br
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|