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RODAPÉ
Prosa de numerosas dobras
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Ugolino e a Perdiz", de
Davi Arrigucci Jr., foi festejado como acontecimento do
mundo editorial, mas teve recepção tímida por parte da crítica. É
compreensível. O fato de o autor
ser um dos mais importantes intérpretes da literatura brasileira
acarreta uma estranha inversão:
quem quer que escreva sobre esse
breve relato tem a sensação de
que não é o livro que estará sendo
avaliado, mas que o resenhista será fatalmente contrastado com a
argúcia analítica do renomado
professor de literatura, que estréia
como ficcionista depois de produzir ensaios sobre autores como
Cortázar, Manuel Bandeira e
Drummond.
E, no entanto, Arrigucci faz de
tudo para que leitores e críticos se
convençam de que a narrativa
não passa de um divertimento
sem maiores complexidades, a
simples transcrição de uma história oral que ouviu em sua cidade
natal, São João da Boa Vista (interior de São Paulo).
O livro conta um episódio na vida de Ugolino Michelangeli, serralheiro de origem italiana cujo
maior prazer é a caça. "Construtor de engenhosos bordados de
ferro", ele é igualmente um artesão de histórias, para quem "rastrear o significado de uma palavra
não deixava de ser também uma
forma de caçar".
Logo no início, Arrigucci se diz
fiel ao relato de Ugolino ("o que
conto, sem tirar nem pôr, são as
suas exatas palavras"). Mas a empreitada do caçador acaba assumindo proporções metafísicas.
Já octogenário, ele ouve falar de
uma perdiz que tem uma capacidade singular de escapar aos predadores. Ugolino sai então ao encalço de sua presa com obsessão
terminal, como se o desafio fosse
um capítulo derradeiro de sua vida e desse mundo repetitivo, encantado pela narrativa, em que a
experiência se prolonga em casos
de caçador contados ao redor da
mesa comunitária.
A prosa de Arrigucci consegue
reproduzir o magnetismo e aquela sensação de autenticidade do
vivido que toda história oral carrega. Uma simples descrição dos
preparativos para a caçada (quando Ugolino carrega sua matula
com salames, nacos de queijo e
cachaça) é um festim de imagens
voluptuosas -para a qual contribui a familiaridade do autor com
as particularidades linguísticas do
interior paulista e mineiro.
Até aqui, estamos nos limites de
um "causo" de matuto vazado em
tom menor. Mas "Ugolino e a
Perdiz" vai bem além do âmbito
horizontal dessa dialética do viver
e do narrar. Sem jamais abandonar o registro da experiência íntima, Arrigucci vai inserindo o relato numa dimensão vertical.
A perdiz, enrodilhada em um
ponto invisível ou se expandindo
na circunferência de um vôo inatingível, envolve o ferreiro numa
meditação cheia de transcendências:
"Aquela perdiz ia além de qualquer coisa; para cercá-la, só mesmo se forjasse um anel de ferro,
algum maleável estratagema,
dando voltas à idéia, para fazer virar o feitiço contra a feiticeira. E
Ugolino perdia-se nos círculos de
seus próprios pensamentos, pois
de círculo em círculo, as coisas
iam mudando de figura. Se a gente joga uma pedra na água parada,
se forma um anel que engendra
outro anel, que engendra outro
anel. A idéia servia para a perdiz
que foge, a luz do sol que vem bater no abacateiro e até para Deus,
que, três em um, de cima nos governa".
O jogo de ocultamento da perdiz é uma espécie de metáfora viva do próprio texto, em que o narrador se recolhe ao papel de mero
porta-voz de Ugolino, ao mesmo
tempo em que nos dá todas as indicações de que a história guarda
outras camadas de leitura.
Assim, a "coincidência" entre o
nome do protagonista e o do conde Ugolino della Gherardesca
(que o poeta italiano Dante Alighieri coloca num dos círculo do
"Inferno", na "Divina Comédia")
readquire seu sentido cosmológico (agora em chave positiva) a
partir da epígrafe do livro, que Arrigucci toma de empréstimo ao
"Paraíso".
Do inferno dantesco para os
anéis celestiais, portanto, o Ugolino brasileiro vai forjando seu aros
de ferro e sua histórias em direção
ao "cerrado inexistente" anunciado pela última perdiz e pela "prosa de numerosas dobras" desse
escritor que migrou do ensaio para a ficção.
Ugolino e a Perdiz
Autor: Davi Arrigucci Jr.
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 29 (80 págs.)
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