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São Paulo, sábado, 20 de dezembro de 2003

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RODAPÉ

Prosa de numerosas dobras

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Ugolino e a Perdiz", de Davi Arrigucci Jr., foi festejado como acontecimento do mundo editorial, mas teve recepção tímida por parte da crítica. É compreensível. O fato de o autor ser um dos mais importantes intérpretes da literatura brasileira acarreta uma estranha inversão: quem quer que escreva sobre esse breve relato tem a sensação de que não é o livro que estará sendo avaliado, mas que o resenhista será fatalmente contrastado com a argúcia analítica do renomado professor de literatura, que estréia como ficcionista depois de produzir ensaios sobre autores como Cortázar, Manuel Bandeira e Drummond.
E, no entanto, Arrigucci faz de tudo para que leitores e críticos se convençam de que a narrativa não passa de um divertimento sem maiores complexidades, a simples transcrição de uma história oral que ouviu em sua cidade natal, São João da Boa Vista (interior de São Paulo).
O livro conta um episódio na vida de Ugolino Michelangeli, serralheiro de origem italiana cujo maior prazer é a caça. "Construtor de engenhosos bordados de ferro", ele é igualmente um artesão de histórias, para quem "rastrear o significado de uma palavra não deixava de ser também uma forma de caçar".
Logo no início, Arrigucci se diz fiel ao relato de Ugolino ("o que conto, sem tirar nem pôr, são as suas exatas palavras"). Mas a empreitada do caçador acaba assumindo proporções metafísicas.
Já octogenário, ele ouve falar de uma perdiz que tem uma capacidade singular de escapar aos predadores. Ugolino sai então ao encalço de sua presa com obsessão terminal, como se o desafio fosse um capítulo derradeiro de sua vida e desse mundo repetitivo, encantado pela narrativa, em que a experiência se prolonga em casos de caçador contados ao redor da mesa comunitária.
A prosa de Arrigucci consegue reproduzir o magnetismo e aquela sensação de autenticidade do vivido que toda história oral carrega. Uma simples descrição dos preparativos para a caçada (quando Ugolino carrega sua matula com salames, nacos de queijo e cachaça) é um festim de imagens voluptuosas -para a qual contribui a familiaridade do autor com as particularidades linguísticas do interior paulista e mineiro.
Até aqui, estamos nos limites de um "causo" de matuto vazado em tom menor. Mas "Ugolino e a Perdiz" vai bem além do âmbito horizontal dessa dialética do viver e do narrar. Sem jamais abandonar o registro da experiência íntima, Arrigucci vai inserindo o relato numa dimensão vertical.
A perdiz, enrodilhada em um ponto invisível ou se expandindo na circunferência de um vôo inatingível, envolve o ferreiro numa meditação cheia de transcendências:
"Aquela perdiz ia além de qualquer coisa; para cercá-la, só mesmo se forjasse um anel de ferro, algum maleável estratagema, dando voltas à idéia, para fazer virar o feitiço contra a feiticeira. E Ugolino perdia-se nos círculos de seus próprios pensamentos, pois de círculo em círculo, as coisas iam mudando de figura. Se a gente joga uma pedra na água parada, se forma um anel que engendra outro anel, que engendra outro anel. A idéia servia para a perdiz que foge, a luz do sol que vem bater no abacateiro e até para Deus, que, três em um, de cima nos governa".
O jogo de ocultamento da perdiz é uma espécie de metáfora viva do próprio texto, em que o narrador se recolhe ao papel de mero porta-voz de Ugolino, ao mesmo tempo em que nos dá todas as indicações de que a história guarda outras camadas de leitura.
Assim, a "coincidência" entre o nome do protagonista e o do conde Ugolino della Gherardesca (que o poeta italiano Dante Alighieri coloca num dos círculo do "Inferno", na "Divina Comédia") readquire seu sentido cosmológico (agora em chave positiva) a partir da epígrafe do livro, que Arrigucci toma de empréstimo ao "Paraíso".
Do inferno dantesco para os anéis celestiais, portanto, o Ugolino brasileiro vai forjando seu aros de ferro e sua histórias em direção ao "cerrado inexistente" anunciado pela última perdiz e pela "prosa de numerosas dobras" desse escritor que migrou do ensaio para a ficção.


Ugolino e a Perdiz     
Autor: Davi Arrigucci Jr.
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 29 (80 págs.)



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