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LITERATURA
biblioteca FOLHA
"Sargento Getúlio" é símbolo de mudança de rumo no regionalismo
João Ubaldo coloca jagunço na encruzilhada da História
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Quando João Ubaldo Ribeiro lançou "Sargento Getúlio", em 1971, a vertente literária a
que o livro pertence estava em
baixa. O regionalismo produzira
algumas obras-primas de José
Lins do Rego, Graciliano Ramos e
Érico Veríssimo nos anos de 1930
e 1940. Mas, a despeito de uns romances nos decênios seguintes, e
do ápice da prosa de João Guimarães Rosa, era a ficção urbana que
vinha ganhando espaço. "Sargento Getúlio" pode ser visto como
símbolo dessa mudança de rumo.
Este romance hoje clássico conta a história de Getúlio Santos Bezerra (cujo "nome é um verso"),
que, após matar a mulher grávida
por conta de uma suposta traição,
torna-se protegido de um caudilho sergipano. Sargento da Polícia
Militar, com 20 mortes nas costas,
recebe a incumbência de capturar
um inimigo político e trazê-lo, vivo, até seu chefe em Aracaju.
Getúlio prende o camarada em
Paulo Afonso, na Bahia, e inicia
uma viagem pelo sertão. No entanto, a meio caminho, recebe a
notícia de que o equilíbrio político
mudara e que seu chefe, ora acuado, não pode protegê-lo. O sargento deve soltar o prisioneiro e
desaparecer por uns tempos.
Para piorar a situação, o preso
seduz a filha do fazendeiro que os
hospeda. Como castigo, Getúlio
arranca-lhe quatro dentes com
alicate. Em seguida, a fazenda é
invadida por forças do governo e,
no meio do tiroteio, o sargento
decapita um tenente. Getúlio está
decidido a levar o prisioneiro a
Aracaju. Mesmo sem o aval do
caudilho. Mesmo ao custo da própria vida.
Escrito em primeira pessoa,
sem escamotear os atos bárbaros
do protagonista, o romance narra
um trágico canto do cisne. Fruto
de uma vida paralisada no interior de Sergipe ("o tempo apeava") e aspirando a um destino
quase mítico, Getúlio não entende
a mudança política, ideológica e
social que ocorre ao seu redor.
Preso numa encruzilhada da
História, ele não vê alternativa senão seguir em frente: "Não sou
homem de parar no meio", diz.
Ante a ordem de desaparecer, retruca: "Quem pode sumir é os outros, como é que eu posso sumir
se sou eu?". O jagunço é símbolo
de um poder arcaico, de origem
agrária, repentinamente indesejado.
O que antes era feito abertamente, agora se realiza às ocultas.
A figura ostensiva Getúlio precisa
desaparecer, mas como? Dentro
da lógica do personagem, trata-se
de algo impossível, como a morte
em vida ou a inconsciência no comando da consciência.
A cena final do romance, em
que Getúlio espia a capital do Estado do outro lado do rio, é significativa. A cidade, nêmesis ingrata
e incompreensível, de onde emanam os ventos da mudança, está
muito próxima, mas lhe é inacessível.
O sargento se instituiu na história pela força do verbo e de um irresistível fluxo de consciência verbalizado ("Quando estou pensando, estou falando, quando estou
falando, estou pensando, não sei
direito.") que se inicia com a magnífica frase "A gota serena é assim,
não é fixe". Seu reino é o da fábula. Por meio de um discurso exuberante, misto de arcaísmo, oralidade e ultracorreção, sua marca
sobrevive. Mas seus tempos são
outros.
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