São Paulo, sexta-feira, 21 de janeiro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Aviões, bicicletas e Estados Unidos

Achei exagerada a cobertura, tanto na parte de informação como na de opinião, sobre o novo avião que servirá a Presidência da República. Eu próprio comentei o assunto ("Taj Mahal voador") em crônica desta semana, na página A2 deste jornal. Evitei aquela crítica pedestre, na base do "enquanto houver uma criancinha passando fome, Lula não deveria comprar uma azeitona a mais para botar em sua empada". Bem verdade que um avião geralmente custa mais caro do que uma empada e muito mais do que uma azeitona.
Os argumentos a favor da aquisição são muitos e ponderáveis. Não se trata de um brinquedinho para Lula ir e vir pelos céus do Brasil e do mundo. O avião que estava a serviço gastava uma fortuna no uso, na segurança e na manutenção. A longo prazo, o novo aparelho parece que sairá mais barato. No contrato de compra, a vendedora se obriga a investir no Brasil o equivalente ao preço do Airbus. Se é verdade e se for concretizado o investimento, palmas para o avião.
E, finalmente, o argumento definitivo e verdadeiro: o avião não é de Lula, é da Presidência, assim como o Palácio da Alvorada, a Granja do Torto, a faixa presidencial, o Rolls-Royce que desfila no Dia da Independência e alguns outros bens móveis ou imóveis que não sei nem tenho obrigação nem curiosidade em saber.
O avião está sendo considerado uma jóia, um santo dos santos, um Taj Mahal aéreo, um jardim suspenso da Babilônia. Pelas fotos de seu interior, até que me parece coisa modesta, não se comparando a muitos jatinhos que servem alguns empresários daqui e do resto do mundo.
Além da cama estreita, que a própria Aeronáutica considerou imprópria para um presidente com as dimensões de Lula, será um duro exercício para o presidente conseguir ensaboar-se dentro do exíguo banheiro que colocaram. Desconfio que os fabricantes tenham pensado que o atual presidente fosse o Marco Maciel.
Não gostei mesmo foi do exterior, aquele extenso "República Federativa do Brasil". Além de comprido demais para o tamanho do avião, o nome oficial do país não me agrada. Deveria ser apenas "Brasil" e bastaria. Também não gostava do nome anterior, "Estados Unidos do Brasil", e tenho uma historinha pessoal a contar sobre o assunto.
Em 1965, o nome do país ainda era "Estados Unidos do Brasil". Em fevereiro daquele ano, anunciava-se que o governo militar editaria um novo ato institucional, que seria o segundo da série. Políticos e jornalistas se esbofavam para saber como seria o novo ato, e eu resolvi fabricar um, que publiquei na ocasião, no finado "Correio da Manhã". O ato que inventei era longo e começava rotineiramente com o artigo 1º, que rezava:
"A partir da publicação deste ato, os Estados Unidos do Brasil passarão a denominar-se Brasil dos Estados Unidos".
Até hoje não sei por que as autoridades e os bancos norte-americanos cismaram com o inocente artigo de um ato fictício feito e promulgado por quem não tinha delegação nem necessidade de fazê-lo. Acontece que o jornal atravessava dificuldades; agências e anunciantes negavam-lhe publicidade. Dois bancos estavam na bica de ajudá-lo, não apenas com empréstimos normais mas com apelos a agências de publicidade e a empresas estrangeiras para que fizessem o mesmo. Pediram a minha cabeça. Naquela ocasião, eu respondia a um processo que o ministro da Guerra, general Costa e Silva, movera contra mim. Estava naquela fase difícil em que o sistema militar aproveitava tudo para me sacanear.
A dona do jornal tentou negociar: eu não seria demitido, mas minhas crônicas seriam censuradas previamente por um dos recentes diretores do jornal, que viera para a empresa expressamente a fim de firmar o acordo com os bancos. Não aceitei a proposta e pedi demissão. O redator-chefe, que era o Antônio Callado, fez o mesmo, não em solidariedade a mim, mas por não concordar com a censura que ele nunca fizera.
O lucro disso tudo foi que logo, logo, acho que no Ato Institucional nº 2 verdadeiro, ou em decorrência dele, mudaram o nome do Brasil, o que deu um trabalhão desgraçado para alterar os papéis oficiais, os passaportes, as certidões e, pelo que vejo, até mesmo o novo avião presidencial. Se tivessem colocado o nome antigo, o aparelho ficaria mais elegante e confiável, pois há por aí um outro Estados Unidos que é mais conhecido e respeitado no mundo todo.
Já contei, há tempos, um dos maiores pasmos de minha vida profissional. Estava na Dinamarca, ia entrevistar um ministro da rainha, ele marcou encontro numa confeitaria do centro da cidade. Como me competia, cheguei antes e o aguardei com o fotógrafo Antônio Rudge. Na hora, vi um cara de bicicleta encostar na calçada e se dirigir a mim. Era o ministro de Sua Majestade. Não, não havia ainda o racionamento de gasolina que fez a Europa inteira andar de bicicleta.
Não reparei se na bicicleta de Sua Excelência estava gravado o suntuoso nome do Reino da Dinamarca, onde, segundo Shakespeare, havia algo de podre. Mas seguramente não era nas bicicletas.


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