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CARLOS HEITOR CONY
Aviões, bicicletas e Estados Unidos
Achei exagerada a cobertura, tanto na parte de informação como na de opinião, sobre
o novo avião que servirá a Presidência da República. Eu próprio
comentei o assunto ("Taj Mahal
voador") em crônica desta semana, na página A2 deste jornal.
Evitei aquela crítica pedestre, na
base do "enquanto houver uma
criancinha passando fome, Lula
não deveria comprar uma azeitona a mais para botar em sua empada". Bem verdade que um
avião geralmente custa mais caro
do que uma empada e muito
mais do que uma azeitona.
Os argumentos a favor da aquisição são muitos e ponderáveis.
Não se trata de um brinquedinho
para Lula ir e vir pelos céus do
Brasil e do mundo. O avião que
estava a serviço gastava uma fortuna no uso, na segurança e na
manutenção. A longo prazo, o novo aparelho parece que sairá mais
barato. No contrato de compra, a
vendedora se obriga a investir no
Brasil o equivalente ao preço do
Airbus. Se é verdade e se for concretizado o investimento, palmas
para o avião.
E, finalmente, o argumento definitivo e verdadeiro: o avião não
é de Lula, é da Presidência, assim
como o Palácio da Alvorada, a
Granja do Torto, a faixa presidencial, o Rolls-Royce que desfila
no Dia da Independência e alguns outros bens móveis ou imóveis que não sei nem tenho obrigação nem curiosidade em saber.
O avião está sendo considerado
uma jóia, um santo dos santos,
um Taj Mahal aéreo, um jardim
suspenso da Babilônia. Pelas fotos
de seu interior, até que me parece
coisa modesta, não se comparando a muitos jatinhos que servem
alguns empresários daqui e do
resto do mundo.
Além da cama estreita, que a
própria Aeronáutica considerou
imprópria para um presidente
com as dimensões de Lula, será
um duro exercício para o presidente conseguir ensaboar-se dentro do exíguo banheiro que colocaram. Desconfio que os fabricantes tenham pensado que o
atual presidente fosse o Marco
Maciel.
Não gostei mesmo foi do exterior, aquele extenso "República
Federativa do Brasil". Além de
comprido demais para o tamanho do avião, o nome oficial do
país não me agrada. Deveria ser
apenas "Brasil" e bastaria. Também não gostava do nome anterior, "Estados Unidos do Brasil", e
tenho uma historinha pessoal a
contar sobre o assunto.
Em 1965, o nome do país ainda
era "Estados Unidos do Brasil".
Em fevereiro daquele ano, anunciava-se que o governo militar
editaria um novo ato institucional, que seria o segundo da série.
Políticos e jornalistas se esbofavam para saber como seria o novo
ato, e eu resolvi fabricar um, que
publiquei na ocasião, no finado
"Correio da Manhã". O ato que
inventei era longo e começava rotineiramente com o artigo 1º, que
rezava:
"A partir da publicação deste
ato, os Estados Unidos do Brasil
passarão a denominar-se Brasil
dos Estados Unidos".
Até hoje não sei por que as autoridades e os bancos norte-americanos cismaram com o inocente
artigo de um ato fictício feito e
promulgado por quem não tinha
delegação nem necessidade de fazê-lo. Acontece que o jornal atravessava dificuldades; agências e
anunciantes negavam-lhe publicidade. Dois bancos estavam na
bica de ajudá-lo, não apenas com
empréstimos normais mas com
apelos a agências de publicidade
e a empresas estrangeiras para
que fizessem o mesmo. Pediram a
minha cabeça. Naquela ocasião,
eu respondia a um processo que o
ministro da Guerra, general Costa e Silva, movera contra mim.
Estava naquela fase difícil em que
o sistema militar aproveitava tudo para me sacanear.
A dona do jornal tentou negociar: eu não seria demitido, mas
minhas crônicas seriam censuradas previamente por um dos recentes diretores do jornal, que viera para a empresa expressamente
a fim de firmar o acordo com os
bancos. Não aceitei a proposta e
pedi demissão. O redator-chefe,
que era o Antônio Callado, fez o
mesmo, não em solidariedade a
mim, mas por não concordar com
a censura que ele nunca fizera.
O lucro disso tudo foi que logo,
logo, acho que no Ato Institucional nº 2 verdadeiro, ou em decorrência dele, mudaram o nome do
Brasil, o que deu um trabalhão
desgraçado para alterar os papéis
oficiais, os passaportes, as certidões e, pelo que vejo, até mesmo o
novo avião presidencial. Se tivessem colocado o nome antigo, o
aparelho ficaria mais elegante e
confiável, pois há por aí um outro
Estados Unidos que é mais conhecido e respeitado no mundo todo.
Já contei, há tempos, um dos
maiores pasmos de minha vida
profissional. Estava na Dinamarca, ia entrevistar um ministro da
rainha, ele marcou encontro numa confeitaria do centro da cidade. Como me competia, cheguei
antes e o aguardei com o fotógrafo Antônio Rudge. Na hora, vi um
cara de bicicleta encostar na calçada e se dirigir a mim. Era o ministro de Sua Majestade. Não,
não havia ainda o racionamento
de gasolina que fez a Europa inteira andar de bicicleta.
Não reparei se na bicicleta de
Sua Excelência estava gravado o
suntuoso nome do Reino da Dinamarca, onde, segundo Shakespeare, havia algo de podre. Mas
seguramente não era nas bicicletas.
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