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RODAPÉ
Otto Maria Carpeaux: a biblioteca aberta
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
Em "Os Mistérios da Biblioteca", artigo reunido no segundo e alentado volume de seus "Ensaios Reunidos", Otto Maria Carpeaux (1900-1978) relata o "frisson" dos minutos em que, ainda
estudante, aguardando uma entrevista com o recém-eleito reitor
da Universidade de Viena, pode
passar em revista apressada as estantes de sua biblioteca, investigando, nas escolhas literárias, a intimidade de um espírito europeu
universalista, humanista e erudito,
que valia o seu respeito.
Relendo os escritos dispersos,
publicados em jornais ("A Manhã", "O Jornal" e "O Estado de
S.Paulo", principalmente), entre
1946 e 1971, descobrimo-nos subitamente instalados nos bastidores
da formação intelectual de várias
gerações de brasileiros pensantes,
guiadas pela erudição assombrosa
e nada morna do mestre vienense,
em seu esforço contínuo de enriquecimento do debate de idéias
brasileiro.
Na chegada ao Brasil, em 1939,
fugindo do pesadelo nazista (era
filho de pai judeu e mãe católica),
Carpeaux não foi unanimidade,
mas de imediato conquistou papel
importante no cenário local. A sólida formação européia -estudou
filosofia, letras e ciências naturais
em Viena e militou no jornalismo- resultou numa vocação desbravadora, onívora, capaz dos
grandes panoramas descritivos
que não perdiam a dimensão concreta das singularidades.
Em Croce, dizia, aprendeu as
raízes históricas do processo artístico e delas jamais descuidou. Na
base do seu pensamento estão as
leituras dos culturalistas alemães e
italianos do começo do século,
sustentando uma crítica da arte
que sempre buscou a construção
de pontes entre as diversas esferas
da atividade humana (estética, política, econômica). Como Ortega y
Gasset, um de seus duplos intelectuais, sabia o quanto indústria cultural e sociedade de massas se
opunham a estes esforços compreensivos.
A dimensão enciclopédica de
seu conhecimento é de outro tempo e, durante os anos 60 e 70, se literalizou -foi responsável, ao lado de Antonio Houaiss, pelos verbetes de humanidades da Barsa,
da Delta-Larousse e da Mirador.
Escreveu uma "História da Literatura Ocidental", em oito volumes,
e uma "Breve História da Música",
que transitavam pela diversidade
de escolas nacionais, ancoradas
numa profunda compreensão dos
estilos de época.
A abrangência fáustica desse
projeto, abraçado como missão e
realizado no perecível papel dos
jornais, certamente implicou erros
de percurso: uma ou outra avaliação apressada, que se fiava exclusivamente na intuição, algumas generalizações que, tivesse nova
chance, certamente Carpeaux matizaria. Mas a recompensa aos leitores vale todos riscos, levantando
as lebres de autores e tradições esquivos e pouco conhecidos entre
nós, ainda que com o gesto breve
de somente apontá-los, aprofundando e atualizando o debate sobre os mestres e incorporando elementos das correntes interpretativas que surgiram ao longo de sua
produção crítica.
O espectro de autores que tratou
é amplo o suficiente para, em sua
"História da Literatura Ocidental", ocupar um dos oito volumes
apenas com índices onomásticos,
que tampouco faltam à reunião de
seus dispersos. Certamente, seu
gosto pelo barroco e pelos clássicos fala alto na excelência dos ensaios a eles dedicados. Mas mesmo nos demais nunca falta interesse. Carpeaux tinha desenvolvida ao extremo a capacidade de
apreender a complexidade dos assuntos mais diversos, comunicar o
essencial de maneira simples e
apresentá-los a partir de um vivo
sentimento da contradição.
No Brasil, suas relações com a
militância católica (converteu-se
em 1932) e o governo austríaco valeram-lhe, inicialmente, polêmica
e reputação política controvertida.
Ao cabo de quase meio século de
participação pública no Brasil, como crítico, historiador e jornalista,
opositor de primeira hora do golpe militar, conquistou o respeito e
o reconhecimento de autores
ideologicamente tão diversos como Antonio Candido e Olavo de
Carvalho. Ainda lemos seus ensaios com o gosto dos que descobrem ângulos novos de mundos
desconhecidos.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Ensaios Reunidos - 1946-1971 (vol. 2)
Autor: Otto Maria Carpeaux
Editora: Topbooks
Quanto: R$ 93,90 (942 págs.)
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