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Crítica/livro/"Don Juan (Narrado por Ele Mesmo)"
Handke inverte constantes do mito
Obra, cuja fragmentação desafia a forma do romance, seduz o leitor com suas paisagens desérticas e narrativa econômica
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não é fácil escrever sobre Don Juan. Este
mito está para a modernidade como o de figuras
como Ulisses, Édipo e Orestes
para a Antiguidade.
Como escrever algo de original sobre este personagem depois de Tirso de Molina, Molière, Goldoni, Mozart e seu libretista da Ponte, de Byron, de
Tolstoi, de Brecht, Ettore Scola
ou de Lacan, entre dezenas de
outros?
A resposta irônica e pós-romântica de Peter Handke é
simples como tudo o que é genial: basta inverter algumas
constantes e, sobretudo, brincar com os antecessores a ele
na escritura deste mito. Podemos dizer que ele se saiu muito
bem neste desafio.
"Don Juan não era nenhum
sedutor", afirma enfaticamente
o narrador, como que esgrimando com Kierkegaard. Este
livro -que, por conta da sua
fragmentação, desafia a forma
do romance- é narrado nas
cercanias de uma Port Royal
em ruínas. Ela é caracterizada
como um deserto, como toda a
paisagem que desfila na obra é
desértica: com exceção dos momentos de corte, apenas sutilmente indicados, compostos
pelos encontros de Don Juan
com suas mulheres.
Ele as retira do deserto de
suas existências. Colore-as, assim como a paisagem desértica
é pontilhada por flores e sementes que voam ao longo das
páginas desse livro, como se
fossem sêmen a dar vida ao entorno árido.
Apesar de ser apresentada
como uma narração de Don
Juan, o narrador é o dono de
um albergue vazio, leitor cansado, que vai ter sua vida subitamente preenchida pela aparição "do próprio Don Juan".
Este procurava um confessor
para suas aventuras. Don Juan
é apresentado como "órfão",
uma pessoa que perdeu alguém
que muito amava, provavelmente um filho. Órfão deste filho, ele se distanciara das pessoas. Apenas nos últimos sete dias anteriores ao encontro
com o narrador ele voltara à sua
atividade, ou seja, conseguira,
finalmente, fazer seu trabalho
de luto por meio das mulheres.
Ele narra, no jardim do albergue, cada uma de suas aventuras, uma por noite.
Cada uma teria se dado em
um diferente ponto: em Tbilisi
(na Geórgia), em Damasco, em
Ceuta (enclave espanhol no
norte da África), em um fiorde
da Noruega, em um monte de
lixo (como uma "duna artificial") na Holanda, em um local
desconhecido e, por fim, já a caminho de Port Royal.
Narrativa econômica
As narrativas poupam o leitor de qualquer detalhe sexual
(com exceção da vida erótica do
criado de Don Juan, adepto das
"feias" e de sexo sórdido -como as personagens de Kafka).
Cada pequena história possui a mesma estrutura e personagens semelhantes. A narrativa vai ficando cada vez mais econômica, já que o narrador
poupa o leitor das repetições.
Estas, por sua vez, estão no
cerne da questão de Don Juan:
por um lado, a sucessão da conquista das mulheres era necessariamente repetitiva ("Repetir: só mesmo isso o encorajava"), por outro, Handke insere
aqui sua leitura de Don Juan
como alguém esmagado pela
questão da temporalidade. Os
segundos tocam para ele como
as badaladas de um carrilhão
anunciando a morte: dele e de
seu "filho".
O próprio Don Juan, quando
entra na história, aparece ao
narrador como um "rapaz arfante de outrora", que ele havia
visto em sua infância. Por fim, o
próprio Handke joga aqui com
o tema da obra literária como
repetição e variação em torno
de obras passadas.
Seu Don Juan tem algo de demoníaco (ele se relaciona com
o mundo animal como Mefistófeles o faz), mas, ao mesmo
tempo, não há nem apresentação moralizante da figura de
um pecador (lembremos do inferno no final de "Don Giovanni"), nem nada dos libertinos
das versões do século 18.
Na sua sobreposição de sexualidade e morte ele encarna
mais uma alegoria da dupla
freudiana Eros e Tânatos, ou
mesmo tende para uma apresentação do gozo, em sua face
não simbólica (Don Juan é "a
coisa mais real do mundo").
Poética do deserto
Pôr Don Juan em uma Port
Royal desértica, local que foi sinônimo do pensamento racionalista, indica também um desejo de traçar uma poética do deserto dentro da Europa.
Não por acaso, o percurso de
Don Juan realiza um contorno
desse continente para acabar
como que no seu coração, próximo a Paris. No deserto existe
pouca variação, ou: tudo é tão
sutilmente variado que leva à
monotonia. Don Juan desperta
as mulheres para a solidão em
que viviam, ou seja, para o deserto de nossas vidas marcadas
pela técnica.
Nós, leitores, ao percorrermos esta história que se apresenta ironicamente como "a
definitiva e verdadeira história
de Don Juan" ficamos, apesar
de tudo, seduzidos pelas paisagens desérticas de Handke.
"Entenda quem puder", como exclama seu criado.
MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor livre-docente da Unicamp e autor, entre outros, de "O
Local da Diferença" (ed. 34)
DON JUAN (NARRADO POR
ELE MESMO)
Autor: Peter Handke
Tradução: Simone Homem de Mello
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 29 (144 págs.)
Avaliação: ótimo
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