São Paulo, segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Crítica/livro/"Don Juan (Narrado por Ele Mesmo)"

Handke inverte constantes do mito

Obra, cuja fragmentação desafia a forma do romance, seduz o leitor com suas paisagens desérticas e narrativa econômica

MÁRCIO SELIGMANN-SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é fácil escrever sobre Don Juan. Este mito está para a modernidade como o de figuras como Ulisses, Édipo e Orestes para a Antiguidade.
Como escrever algo de original sobre este personagem depois de Tirso de Molina, Molière, Goldoni, Mozart e seu libretista da Ponte, de Byron, de Tolstoi, de Brecht, Ettore Scola ou de Lacan, entre dezenas de outros?
A resposta irônica e pós-romântica de Peter Handke é simples como tudo o que é genial: basta inverter algumas constantes e, sobretudo, brincar com os antecessores a ele na escritura deste mito. Podemos dizer que ele se saiu muito bem neste desafio.
"Don Juan não era nenhum sedutor", afirma enfaticamente o narrador, como que esgrimando com Kierkegaard. Este livro -que, por conta da sua fragmentação, desafia a forma do romance- é narrado nas cercanias de uma Port Royal em ruínas. Ela é caracterizada como um deserto, como toda a paisagem que desfila na obra é desértica: com exceção dos momentos de corte, apenas sutilmente indicados, compostos pelos encontros de Don Juan com suas mulheres.
Ele as retira do deserto de suas existências. Colore-as, assim como a paisagem desértica é pontilhada por flores e sementes que voam ao longo das páginas desse livro, como se fossem sêmen a dar vida ao entorno árido.
Apesar de ser apresentada como uma narração de Don Juan, o narrador é o dono de um albergue vazio, leitor cansado, que vai ter sua vida subitamente preenchida pela aparição "do próprio Don Juan".
Este procurava um confessor para suas aventuras. Don Juan é apresentado como "órfão", uma pessoa que perdeu alguém que muito amava, provavelmente um filho. Órfão deste filho, ele se distanciara das pessoas. Apenas nos últimos sete dias anteriores ao encontro com o narrador ele voltara à sua atividade, ou seja, conseguira, finalmente, fazer seu trabalho de luto por meio das mulheres.
Ele narra, no jardim do albergue, cada uma de suas aventuras, uma por noite. Cada uma teria se dado em um diferente ponto: em Tbilisi (na Geórgia), em Damasco, em Ceuta (enclave espanhol no norte da África), em um fiorde da Noruega, em um monte de lixo (como uma "duna artificial") na Holanda, em um local desconhecido e, por fim, já a caminho de Port Royal.
Narrativa econômica
As narrativas poupam o leitor de qualquer detalhe sexual (com exceção da vida erótica do criado de Don Juan, adepto das "feias" e de sexo sórdido -como as personagens de Kafka).
Cada pequena história possui a mesma estrutura e personagens semelhantes. A narrativa vai ficando cada vez mais econômica, já que o narrador poupa o leitor das repetições.
Estas, por sua vez, estão no cerne da questão de Don Juan: por um lado, a sucessão da conquista das mulheres era necessariamente repetitiva ("Repetir: só mesmo isso o encorajava"), por outro, Handke insere aqui sua leitura de Don Juan como alguém esmagado pela questão da temporalidade. Os segundos tocam para ele como as badaladas de um carrilhão anunciando a morte: dele e de seu "filho".
O próprio Don Juan, quando entra na história, aparece ao narrador como um "rapaz arfante de outrora", que ele havia visto em sua infância. Por fim, o próprio Handke joga aqui com o tema da obra literária como repetição e variação em torno de obras passadas.
Seu Don Juan tem algo de demoníaco (ele se relaciona com o mundo animal como Mefistófeles o faz), mas, ao mesmo tempo, não há nem apresentação moralizante da figura de um pecador (lembremos do inferno no final de "Don Giovanni"), nem nada dos libertinos das versões do século 18.
Na sua sobreposição de sexualidade e morte ele encarna mais uma alegoria da dupla freudiana Eros e Tânatos, ou mesmo tende para uma apresentação do gozo, em sua face não simbólica (Don Juan é "a coisa mais real do mundo").

Poética do deserto
Pôr Don Juan em uma Port Royal desértica, local que foi sinônimo do pensamento racionalista, indica também um desejo de traçar uma poética do deserto dentro da Europa.
Não por acaso, o percurso de Don Juan realiza um contorno desse continente para acabar como que no seu coração, próximo a Paris. No deserto existe pouca variação, ou: tudo é tão sutilmente variado que leva à monotonia. Don Juan desperta as mulheres para a solidão em que viviam, ou seja, para o deserto de nossas vidas marcadas pela técnica.
Nós, leitores, ao percorrermos esta história que se apresenta ironicamente como "a definitiva e verdadeira história de Don Juan" ficamos, apesar de tudo, seduzidos pelas paisagens desérticas de Handke. "Entenda quem puder", como exclama seu criado.


MÁRCIO SELIGMANN-SILVA é professor livre-docente da Unicamp e autor, entre outros, de "O Local da Diferença" (ed. 34)

DON JUAN (NARRADO POR ELE MESMO)
Autor:
Peter Handke
Tradução: Simone Homem de Mello
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 29 (144 págs.)
Avaliação: ótimo


Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Trechos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.