São Paulo, quarta-feira, 21 de fevereiro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Pancetti contrastou marinhas lindas com auto-retratos "feios"

Na exposição "Pancetti", em cartaz na Faap, há um vídeo com cerca de dez minutos contando a carreira do pintor. Numa cena, Pancetti aparece sorridente, animado, subindo por uma ladeira com disposição de esportista, até encontrar-se com um velhote -provavelmente um pescador- sentado à soleira de um casebre. Entrega-lhe um quadro: vemos que é o retrato do velhote, que Pancetti parece ter acabado de pintar.
Em outros momentos do documentário, Pancetti é mostrado em plena atividade, com o cigarro na boca, camiseta de operário, pintando suas marinhas com um vigor de rapazola; as rugas, que o sorriso acentua, parecem ser de sol, não de velhice.
José Pancetti (1902-1958) trabalhou como pintor de paredes, garçom e camareiro de hotel até entrar para a Marinha; já pintor consagrado, reformou-se como segundo-tenente. Um auto-retrato, logo na entrada da exposição, mostra Pancetti com roupa de marinheiro, segurando um livro sobre arte moderna.
O contraste é irônico, sem dúvida; o pintor acentua sua origem popular, e qualquer volume teorizando sobre movimentos estéticos parece, em suas mãos, corresponder quase a um intuito de provocação.
Mas há um contraste mais significativo. É o que opõe a simpatia juvenil de Pancetti, no documentário, e o ar agressivo, "feio" mesmo, de seu rosto nos auto-retratos. O olhar de soslaio, a barba por fazer, o queixo saliente, tudo parece hostil. Não que, no auto-retrato, o pintor esteja a hostilizar a si mesmo; dá a impressão de interpelar o espectador, de julgá-lo importuno. Surge para nós como de poucos amigos, bem "anti-social", se se pode dizer assim.
Podemos notar ainda mais uma oposição -que é entre esses auto-retratos "feios" e os quadros que lhe garantiram grande sucesso, aquelas incontáveis marinhas, sempre lindas, de cores ordenadas e horizontes bem abertos. Não há quem não se encante; areia, pedras, céu e mar se harmonizam, como se fossem algo que a natureza nos deu de presente e que ao pintor coubesse só mostrar.
Essa "objetividade" de Pancetti foi aos poucos me embatucando. A beleza dessas paisagens tem algo, não digo de "decorativo", porque excluem qualquer sentimento de frivolidade, mas talvez de imóvel, de quase indiferente.
As figuras humanas, quando aparecem, estão sempre de costas para o espectador; mais acentuam do que diminuem o vazio, o silêncio da paisagem. Os barcos que vemos na areia dão a impressão de que nunca voltarão ao mar.
Não se trata de uma natureza que, liberta das agressões humanas, estivesse lá para ser celebrada em sua pureza. Os quadros não parecem retratar um mundo inaugural, uma época anterior à chegada do homem; sugerem, ao contrário, um mundo já não mais habitado, destituído da nossa presença.
Destituído até da passagem do tempo: pois, na maioria dos casos, as marinhas de Pancetti não marcam uma hora específica do dia, as cores não tentam reproduzir um momento transitório ou alguma possível mudança de clima. Mesmo os ziguezagues do desenho foram se atenuando nas últimas obras do pintor.
O aspecto "parado" das paisagens não está ali para sugerir qualquer presságio; no máximo, encontramos uma natureza como que retraída, na defensiva, e o que há de sedutor nos quadros de Pancetti reprime qualquer aceno, qualquer interação com o mundo humano.
Talvez, para um marinheiro, interesse exprimir justamente uma natureza que deixe de ser objeto de intervenção e de trabalho; que se dá apenas a ver, mas com a qual não possamos ter contato.
É, sem dúvida, o mesmo retraimento, a atitude de quem não quer ser importunado, que víamos nos auto-retratos do pintor. Há, de todo modo, uma recusa muito profunda nesses quadros. "Não pertenço ao mundo de vocês", parecem dizer.
No "Diário Póstumo", de Eugenio Montale, que acaba de ser publicado em edição bilíngue pela editora Record, há alguns versos em que o poeta, já bem velho, reclama essa mesma indiferença. "O tempo dos eventos/ é diverso do nosso." E, podemos dizer, diante de um quadro de Pancetti, o que Montale diz a uma jovem admiradora, a quem não pode mais amar: "É o saber-te igual/ num tempo diverso que talvez/ me doa". O pintor sorridente do documentário está, sem dúvida, bem distante de nós.


Texto Anterior: Cineasta Stanley Kramer, 87, morre nos EUA
Próximo Texto: Memória: João do Rio está de volta, em livros e televisão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.