São Paulo, sábado, 21 de março de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Livros

Ex-ministro faz relato pessoal de cenas históricas

José Gregori escreve memórias colhidas em postos privilegiados de observação

Em "Sonhos que Alimentam a Vida", o autor, aos 78, lembra momentos pré-ditadura, seu engajamento nas Diretas-Já e participação na gestão FHC

JOÃO BATISTA NATALI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Quando presidente, Fernando Henrique Cardoso mantinha um "governo oculto", instalado em Brasília no apartamento do sociólogo Vilmar Faria, assessor de sua ilimitada confiança. A expressão é talvez um pouco exagerada, mas o fato é que periodicamente ali jantavam Paulo Renato Souza (ministro da Educação), Raul Jungmann (Reforma Agrária), o professor Abílio Baeta Neves e José Gregori, veterano ativista dos direitos humanos e, por 19 meses, ministro da Justiça.
Os convidados, ministros das áreas social e econômica, sentiam-se livres para desabafos que Vilmar transmitia a FHC.
Era uma espécie de "câmara de compensação de angústias", diz Gregori, em suas memórias, "Os Sonhos que Alimentam a Vida" -relato muito pessoal e bastante saboroso. Poucas vidas se transformam em postos privilegiados de observação histórica. Gregori, hoje aos 78, é dono de uma delas. Ele integrou a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, nos anos 70 importante referência para familiares de torturados e presos políticos.
Foi secretário do governo paulista de Franco Montoro e ocupou a chefia de gabinete de quatro ministros pós-redemocratização.

Ativismo
As histórias e impressões que Gregori transmite têm o lastro do engajamento. Sobre uma primeira pele do adolescente paulistano de classe média, que gostava de ler e que se formou aos 24 anos em direito, cresceu uma outra , com células de alta sensibilidade política.
É assim que, no Brasil anterior ao golpe de 64, ele se deixa encantar pelo deputado Francisco Julião, o homem das Ligas Camponesas. Mas seu verdadeiro aprendizado deu-se com San Tiago Dantas (1911-1964), de quem foi secretário particular. Ministro das Relações Exteriores de João Goulart e a seguir ministro da Fazenda, San Tiago, relata Gregori, foi lúcida testemunha do confronto entre "esquerda positiva" e "esquerda negativa" que, por suas radicalizações, forneceu combustível ao golpe. Há nas memórias o testemunho de cenas que marcaram a história do país. Por exemplo, o livro narra a noite de 31 de março de 1964, quando, já virtualmente deposto, Jango, desfeito numa poltrona, é informado no palácio das Laranjeiras, no Rio, de que não funcionara o esquema de resistência montado nas Forças Armadas pelo general Assis Brasil.
O memorialista também teve estreito contato com d. Paulo Evaristo Arns, cardeal-arcebispo de São Paulo. Nos anos 70, ele "foi a figura pública mais importante no Brasil", diz José Gregori, que integra o primeiro núcleo da Comissão Justiça e Paz. A missão dela foi de início dissuasiva: evitar a tortura ou a morte de pessoas que a comissão informava à polícia saber terem sido presas.
O papel de d. Paulo, mesmo que "ecumênico" entre as correntes políticas, é de um ativismo constante. Partiu dele, por exemplo, o veto para que Dalmo Dallari ou Hélio Bicudo concorressem em 1978 ao Senado numa sublegenda do MDB, oposição tolerada pela ditadura. Em lugar dos dois, quem se candidatou foi FHC.
A candidatura foi apoiada por Lula, então dirigente sindical, com quem FHC teria nos anos seguintes bem mais afinidades que desencontros. Sobre Lula, Gregori escreve: "Não era um líder influenciável. Aceitava os apoios, que chegavam aos borbotões, mas aparentava ouvi-los sem escutá-los".
Nos anos seguintes, com o avanço da redemocratização, Gregori se elege deputado estadual, faz parte do governo Montoro e se integra à campanha das Diretas-Já. O Brasil está mudando. No governo Sarney, é chefe de gabinete de Marcos Freire (ministro da Reforma Agrária) e de Renato Archer (Previdência Social). O memorialista revela que o computador central da Previdência, no Rio, construído num prédio supostamente à prova de uma bomba atômica, era refrigerado por um ventilador de confeitaria, equilibrado em parcos fios de arame. Não adere ao núcleo inicial do PSDB. Permanece no PMDB e participa, em 1989, da candidatura presidencial de Ulysses Guimarães. Gregori foi responsável pela criação da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, o que crê ter sido um de seus grandes trunfos. O fato de ter terminado os anos FHC como embaixador em Lisboa é, de certo modo, uma cereja que decora sua biografia.



OS SONHOS QUE ALIMENTAM A VIDA
Autor: José Gregori
Editora: Jaboticaba
Quanto: R$ 49 (432 págs.)



Texto Anterior: Crítica/"A Chave Estrela": Contos de Primo Levi refletem sobre o papel da testemunha
Próximo Texto: "Av. Paulista" reúne crônicas de João Pereira Coutinho
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.