São Paulo, domingo, 21 de março de 2010

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ANÁLISE

Os bons selvagens mirins

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Garotas podem ser más? Embora a visão romantizada da infância sugira a existência de uma pureza primordial, crianças, como qualquer outro animal social, são capazes tanto de atitudes do mais profundo egoísmo -de crueldade mesmo- quanto de gestos altruístas. É um clássico caso de copo meio cheio ou meio vazio.
E a pergunta interessante é: por que tanta gente deixa seletivamente de ver os fatos que não lhe convêm para sustentar o mito da infância angelical?
Parte da resposta está na biologia. Bebês e crianças comovem e mobilizam nossos instintos de cuidadores. Estes serezinhos foram "desenhados" com características que exploram nossos vieses sensórios. Tais traços são há décadas conhecidos de artistas como Walt Disney. O que torna Mickey Mouse fofinho e não repulsivo como a maioria dos murídeos? Como observou o etólogo Marc Hauser, "a cabeça muito maior do que o corpo e os olhos grandes em relação ao rosto (...) são como doces visuais, irresistíveis para nossos olhos".
E, se essa é a base biológica do "amor às crianças", sobre ela passaram a operar poderosos fatores culturais, que reforçaram essa predisposição natural até torná-la uma ideologia.
Enquanto bebês nasciam aos borbotões e morriam em proporções parecidas -o que ocorreu durante 99,9% da história- , víamos o óbito de filhos como algo, se não natural, ao menos esperado. Evitávamos investir tudo num único rebento.
Com o surgimento da família burguesa, a partir do século 16, as coisas começaram a mudar. Ter um bebê e vê-lo chegar à idade adulta deixou de ser uma aposta temerária. Estava aberto o caminho para que o amor paterno pudesse prosperar.
Foi nesse contexto que surgiram, no século 18, pedagogos como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que criou um novo conceito de infância. Jovens não deveriam ser apenas ensinados, mas educados, respeitando-se as especificidades de seu desenvolvimento natural.
O problema é que essa ideia bastante plausível de Rousseau veio misturada com outras, menos razoáveis, como a balela de que o homem é originalmente bom, mas a sociedade o corrompe. Não foi preciso muito para que crianças virassem bons selvagens mirins, a encarnação da bondade primeva.
O fato de Rousseau ter se tornado o filósofo mais influente da história, especialmente no pensamento de esquerda, só aumentou o vigor do mito e o tamanho do estrago provocado.


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