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Sem terra, sem ilusões, no coração do Brasil
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Os sem-terra ganharam a
simpatia do país. Não me lembro de nada parecido. Talvez
as grandes manifestações estudantis de 68, as greves operárias no ABC. Nem elas podem
rivalizar com um movimento
que ocupou o imaginário popular durante algumas semanas na principal rede de TV.
Quando vinha para o hotel,
passei por centenas de tochas
iluminando a Esplanada. Por
todos os cantos vi gente com
bandeiras e bonés vermelhos.
Nos bares e salões só se fala
nisso: os sem-terra chegando
de todos os lados.
Adolescentes, sonhamos com
os camponeses cercando as cidades. Talvez o melhor fosse
não ter sonhado, para não
submeter a realidade a tantas
comparações. Nem ouvir os
discursos.
Mas a realidade está aí, como uma rocha. Quem são
aquelas pessoas com chapéus
de palha na praia, para quem
grita aqui na Esplanada o homem do carro de som? Estamos
sós na escuridão do planalto,
um travesti se agacha para
consertar o salto alto.
Sinto que cairá papel dos
prédios, que a cidade irritada
com a reforma administrativa
também vai protestar. E virão
os metalúrgicos, os estudantes,
e eu anotarei tudo, verei tudo
para contar ao meu sonho como, de fato, tudo aconteceu.
Há dias, fui ao Pontal do Paranapanema. Tantos pês, creio
que interessariam a Guimarães Rosa. No Pontal do Paranapanema... Está lá o Morro
do Diabo, e os sem-terra querem construir uma fucularia.
Sim, uma fucularia, que nos
obriga a buscar correndo um
dicionário e transformar em
farinha.
Na adolescência, o líder camponês era Francisco Julião. Um
dia ele visitou o Rio e o jornal
me designou para cobrir sua
visita à favela. Ele ficou impressionado com a pobreza.
De Julião a Rainha, muita
água correu por baixo da ponte. Manuel da Conceição, que
perdeu uma perna e sofreu
com os militares... Vejo essas
imensas ausências na Esplanada e penso: chegou a hora. Não
é a hora que escolhi, nem mesmo a que imaginei. Mas é a hora.
No Pontal do Paranapanema tive a impressão de que as
marchas, invasões, lutas judiciais são apenas um lado da
história. Nos barracos cobertos
de lona escura, falava-se na
produção, no milho que colhiam, na dificuldade de vendê-lo, no plantio do feijão.
Era como se houvesse um espetáculo permanente que não
podia parar, sessões coincidindo com as chuvas, o inverno.
Ouvi uma conversa já de quem
está na terra, convive com ela,
revolve suas profundezas, consuma o milagre da produção.
E daqui a pouco, quando
realmente houver um espaço
para todos, o principal estará
aí: gente trabalhando, preocupada com o arado, o caminhão
que furou o pneu, a chuva que
não chega.
Sempre haverá lutas, "companheiros, precisamos",
"companheiros, não vamos
tolerar" etc., mas o essencial
já está ali no Pontal do Paranapanema, onde comemos
grandes peixes, o trabalho cotidiano, o corre-corre, as
crianças chorando... Drama de
pequenos proprietários.
Não excluo traumas, grandes
revoluções, não quero esvaziar
a história de todo o seu potencial de surpresas. Sinto apenas
que este filme da reforma
agrária está chegando ao fim.
Se ainda não chegou, pelo menos alguém já me contou o final, na amplidão do Paranapanema.
É como se visse meninos e
meninas brincando na calçada
e agora, na Esplanada do Ministério, fosse ao casamento
deles. Julião, Conceição, Rainha acabarão se fundindo com
as rugas dos lavradores curvados diante da terra, colhendo
suas plantações. Esta página,
estou seguro, será virada na
história do Brasil.
Claro que estou ficando velho e que talvez até já tenha
morrido. Isso acontece nas
longas marchas. Foram muitas
chacinas, incêndios, mutilações. A reforma agrária não é
um piquenique. Isso também
não impede que se festeje um
dia aqui em Brasília, onde o
filho chora e a mãe não ouve.
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