São Paulo, sábado, 21 de abril de 2001

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LIVRO/LANÇAMENTO

Jornalista relembra 12 horas na casa do autor argentino em "Borges - O Mesmo e o Outro"

Borges assustador salta de depoimento recolhido por fã

FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Um ensaio. Um documento. Uma entrevista romanceada. Um ensejo de prosa poética a partir de um encontro jornalístico.
Todas as expressões acima, por um ou outro viés, podem definir o livro "Borges - O Mesmo e o Outro", de Álvaro Alves de Faria.
Faria, 59, é poeta e jornalista. Mas, no caso, talvez o mais importante seja dizer que ele é um aficionado pela obra de Jorge Luis Borges. Já o era em setembro de 1976, quando, na condição de editor do "Jornal de Domingo" (suplemento do "Diário de São Paulo", dos Diários Associados), foi a Buenos Aires entrevistar o autor argentino (1899-1986).
Por que, então, se o encontro entre fã e ídolo foi tão difícil de conseguir -depois de "mais ou menos 20 telefonemas", conta Faria-, sua íntegra só é publicada hoje, numa edição de bolso?
O que levou Faria a deixar o escrito na gaveta de guardados tanto tempo foi o que ouviu em duas tardes na casa do autor. Para um fã, não foi fácil aceitar as posições que Borges expôs, num quase monólogo, por cerca de 12 horas.
O escritor argentino ignorou várias perguntas que Faria tentou lhe propor. Falou do que quis e pediu, para espanto do brasileiro, que ele voltasse no dia seguinte.
Borges queria falar, falar mais: afirmar seu direitismo, seu respeito e crença nos militares -"cavalheiros, senhores bem-intencionados", registrou Faria-, desfiar seu desprezo pela língua espanhola, pela América Latina ("o continente inteiro é um romance mal escrito", anotou o jornalista).
"Dizem que é preciso separar homem e obra. Eu não consigo. Fiquei amargurado, não queria publicar", relembra Faria, dizendo-se ainda incomodado ao pensar em Borges, "genial", fazendo "declarações desprezíveis sobre as coisas do mundo".
É difícil precisar, mesmo conversando com Faria, o que mais lhe causou "terror" no encontro.
A figura de Borges que emerge das páginas do livro é mesmo feia. Ninguém perguntou, mas ele disse, por exemplo, que "a raça negra nada fez, nada faz. Se não existissem negros, a história do mundo não mudaria em nada".
O fato de não falar espanhol e não ter gravado a entrevista, apenas tomado notas ("ele falava muito devagar, era possível entender como se fosse português, e, num ritmo, falava como se fosse poesia"), não impede Faria de descrever detalhes do encontro.
Ele reproduz como o ressentimento de Borges "salta da boca como um bicho furioso" quando o argentino fala sobre não ter sido lembrado pelo Nobel, enquanto a academia sueca se deixara convencer pelos chilenos Gabriela Mistral e Pablo Neruda -"um poeta medíocre", dispara Borges, segundo seu visitante brasileiro.
Além disso, Faria revive a "angústia" por ter encontrado, no sexto andar do prédio da rua Maipú, "um homem desestabilizado, cujo único desejo era morrer".
No livro, Borges diz que deve ser esquecido, como tudo, aliás. "A morte é a grande esperança de que tudo acabe definitivamente."
Mas não acaba. Agora, o livro de Faria ruma para as telas de cinema. O curitibano Nivaldo Lopes, 38, notou a qualidade ficcional do relato, a meio caminho entre o conto e o perfil jornalístico, e quer fazer um média-metragem ainda este ano. Segundo Lopes, o roteiro já foi encaminhado ao ator Paulo José, que viveria Borges.
Uma última questão, além de todo o amargor que Borges destila, causa espanto no livro. Como um jornalista pôde se resignar a ouvir um entrevistado vociferar por tanto tempo, sem interferir?
"O que poderia falar para Borges, especialmente quando ele não queria ser questionado? Era como se eu estivesse num lugar em que não devesse estar", responde Faria, dizendo que ainda admira muito o escritor, mas mudou sua forma de lê-lo.
A admiração se reafirma. "Se ele resolveu falar tudo isso para um jornalista, será que não queria que saísse? Estou cumprindo o que ele, de algum modo, me pediu."


BORGES - O MESMO E O OUTRO. De: Álvaro Alves de Faria. Editora: Escrituras (tel. 0/xx/11/5082-4190, www.escrituras.com.br). Primeira edição. 80 págs. R$ 15.



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