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LIVRO/LANÇAMENTO
Jornalista relembra 12 horas na casa do autor argentino em "Borges - O Mesmo e o Outro"
Borges assustador salta de depoimento recolhido por fã
FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Um ensaio. Um documento.
Uma entrevista romanceada. Um
ensejo de prosa poética a partir de
um encontro jornalístico.
Todas as expressões acima, por
um ou outro viés, podem definir o
livro "Borges - O Mesmo e o Outro", de Álvaro Alves de Faria.
Faria, 59, é poeta e jornalista.
Mas, no caso, talvez o mais importante seja dizer que ele é um
aficionado pela obra de Jorge Luis
Borges. Já o era em setembro de
1976, quando, na condição de editor do "Jornal de Domingo" (suplemento do "Diário de São Paulo", dos Diários Associados), foi a
Buenos Aires entrevistar o autor
argentino (1899-1986).
Por que, então, se o encontro
entre fã e ídolo foi tão difícil de
conseguir -depois de "mais ou
menos 20 telefonemas", conta Faria-, sua íntegra só é publicada
hoje, numa edição de bolso?
O que levou Faria a deixar o escrito na gaveta de guardados tanto tempo foi o que ouviu em duas
tardes na casa do autor. Para um
fã, não foi fácil aceitar as posições
que Borges expôs, num quase
monólogo, por cerca de 12 horas.
O escritor argentino ignorou
várias perguntas que Faria tentou
lhe propor. Falou do que quis e
pediu, para espanto do brasileiro,
que ele voltasse no dia seguinte.
Borges queria falar, falar mais:
afirmar seu direitismo, seu respeito e crença nos militares -"cavalheiros, senhores bem-intencionados", registrou Faria-, desfiar
seu desprezo pela língua espanhola, pela América Latina ("o
continente inteiro é um romance
mal escrito", anotou o jornalista).
"Dizem que é preciso separar
homem e obra. Eu não consigo.
Fiquei amargurado, não queria
publicar", relembra Faria, dizendo-se ainda incomodado ao pensar em Borges, "genial", fazendo
"declarações desprezíveis sobre
as coisas do mundo".
É difícil precisar, mesmo conversando com Faria, o que mais
lhe causou "terror" no encontro.
A figura de Borges que emerge
das páginas do livro é mesmo feia.
Ninguém perguntou, mas ele disse, por exemplo, que "a raça negra
nada fez, nada faz. Se não existissem negros, a história do mundo
não mudaria em nada".
O fato de não falar espanhol e
não ter gravado a entrevista, apenas tomado notas ("ele falava
muito devagar, era possível entender como se fosse português, e,
num ritmo, falava como se fosse
poesia"), não impede Faria de
descrever detalhes do encontro.
Ele reproduz como o ressentimento de Borges "salta da boca
como um bicho furioso" quando
o argentino fala sobre não ter sido
lembrado pelo Nobel, enquanto a
academia sueca se deixara convencer pelos chilenos Gabriela
Mistral e Pablo Neruda -"um
poeta medíocre", dispara Borges,
segundo seu visitante brasileiro.
Além disso, Faria revive a "angústia" por ter encontrado, no
sexto andar do prédio da rua Maipú, "um homem desestabilizado,
cujo único desejo era morrer".
No livro, Borges diz que deve ser
esquecido, como tudo, aliás. "A
morte é a grande esperança de
que tudo acabe definitivamente."
Mas não acaba. Agora, o livro de
Faria ruma para as telas de cinema. O curitibano Nivaldo Lopes,
38, notou a qualidade ficcional do
relato, a meio caminho entre o
conto e o perfil jornalístico, e quer
fazer um média-metragem ainda
este ano. Segundo Lopes, o roteiro
já foi encaminhado ao ator Paulo
José, que viveria Borges.
Uma última questão, além de
todo o amargor que Borges destila, causa espanto no livro. Como
um jornalista pôde se resignar a
ouvir um entrevistado vociferar
por tanto tempo, sem interferir?
"O que poderia falar para Borges, especialmente quando ele
não queria ser questionado? Era
como se eu estivesse num lugar
em que não devesse estar", responde Faria, dizendo que ainda
admira muito o escritor, mas mudou sua forma de lê-lo.
A admiração se reafirma. "Se ele
resolveu falar tudo isso para um
jornalista, será que não queria que
saísse? Estou cumprindo o que
ele, de algum modo, me pediu."
BORGES - O MESMO E O OUTRO. De:
Álvaro Alves de Faria. Editora: Escrituras
(tel. 0/xx/11/5082-4190,
www.escrituras.com.br). Primeira
edição. 80 págs. R$ 15.
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