São Paulo, sexta-feira, 21 de abril de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"BRASÍLIA 18%"

Nelson filma poder em clima alucinatório

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

A atmosfera é um dado determinante em não poucos filmes de Nelson Pereira dos Santos. Era assim em "Rio 40 Graus" (55), um canto ao modo de ser da então capital federal, a seu povo e a seu calor. Também em "Vidas Secas" (63), a estiagem infernal determinava o destino dos personagens e seu modo de vida.
É assim, novamente, que as coisas acontecem em "Brasília 18%", a cifra dizendo respeito à umidade relativa do ar no Distrito Federal. Uma secura diferente da de "Vidas Secas", por certo, mas não menos rica em efeitos. Aqui, o legista Olavo Bilac (Carlos Alberto Riccelli) chega dos EUA para dar seu parecer sobre o caso da suposta morte de uma jornalista. Será dela a ossada encontrada?
Se confirmar essa hipótese, seria uma mão na roda para um monte de gente em Brasília, a começar pelo influente senador Sílvio Romero (Carlos Vereza). Mas a coisa não parece tão simples. Nosso Bilac, sob o efeito depressivo do luto (a morte da mulher), do calor e, quem sabe, das pressões que recebe para dar o resultado do laudo, passa a ter alucinações.
Na verdade, suas visões de Eugênia Câmara (Karine Carvalho) podem ser ou não alucinações. Eis algo que nunca fica inteiramente claro no filme e é seu fundamento menos ficcional do que atmosférico: tudo o que acontece em Brasília parece sofrer o efeito da seca. Como se trata da gente do poder, ninguém passa sede nem é obrigado a migrar. Em compensação, todos os acontecimentos parecem contaminados por um elemento alucinatório. A seca se dá no interior das pessoas.
Esse diagnóstico de Nelson Pereira -até onde eu saiba bastante original- evita-lhe o dissabor de nomear os políticos envolvidos em escândalos. É uma medida sábia, que evita localizar uma crise em particular, o que reduziria demais o alcance do filme.
Ainda assim, o espectador pode imaginar alguns dos personagens envolvidos: o senador de destaque e sua bela filha (Malu Mader) nos fazem pensar em José Sarney, o legista remete a Badan Palhares, do caso PC Farias. Mas nada garante que tais associações não sejam senão alucinações produzidas pelo filme sobre nós.
Esse não é o único artifício a que recorre o autor. A idéia de "colar" nomes de vultos literários quase sempre nacionais aos personagens reforça essa atmosfera de irrealidade que os cerca, enquanto, paradoxalmente, o filme se dedica a detalhar uma corrupção que existe menos nos fatos do que nos rostos, nos modos sarcásticos, no hábito de tramar por tramar que caracteriza políticos e assessores (sobretudo assessores).
Que ao final ninguém saiba se estamos diante de um filme político, policial ou fantástico não deixa de ser um mérito adicional, que condiz bastante com a imagem que fazemos de Brasília. Com habilidade, Nelson Pereira não permite que o sentido assente e se revele durante 3/4 do filme. Pena que no quarto final este filme de mestre se empenhe tanto em encaminhar o fim da trama. Com isso, a forte ambigüidade criada até ali se dissolve para passar pelo gargalo das convenções.


Brasília 18%
   
Direção: Nelson Pereira dos Santos
Produção: Brasil, 2006
Com: Carlos Alberto Riccelli, Othon Bastos
Quando: a partir de hoje nos cines HSBC Belas Artes, Pátio Higienópolis e circuito


Texto Anterior: Crítica/"Estrela Solitária": Novo longa de Wenders fica a um deserto de distância de "Paris, Texas"
Próximo Texto: Crítica/"Instinto Selvagem 2": Seqüência perde ironia e se fecha em "timidez" sexual
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.