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ANTONIO CICERO
A tese de Ivan Karamazov
Longe de ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a condição de relativizar a ética
VOLTA E meia alguém traz novamente à tona a famosa tese
de Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski: "Se Deus não
existe, tudo é permitido". Acho que
muita gente acredita piamente nela
e atribui à irreligiosidade da população a constante e inquietante alta
dos índices de criminalidade. Será
talvez com a intenção de baixar esses índices que os donos ou editores
das revistas brasileiras de circulação
nacional raramente deixam passar
uma semana sem que, ao menos numa das suas revistas, façam propaganda, numa reportagem de capa, da
fé e da religiosidade dos brasileiros.
Ora, a tese do personagem de Ivan
não resiste a um simples experimento de pensamento. Suponha
que me apareça Deus e me ordene
matar o meu filho (ou mãe, ou pai,
ou irmão, ou amante, ou amigo).
Que faria eu? Ponha-se o leitor na
minha pele. Não tenho dúvida de
que a minha primeira reação -a primeira reação de qualquer pessoa
que não tivesse perdido o juízo- seria duvidar do que parecia estar vendo e ouvindo. Eu me beliscaria, para
saber se não estava sonhando; suspeitaria estar tendo um surto de loucura, um delírio etc.
Aquilo simplesmente não poderia
estar acontecendo. E não poderia
estar acontecendo por duas razões:
primeiro, porque Deus não costuma
aparecer, pelo menos hoje em dia.
Quando alguém diz que conversou
com Deus -ainda que quem o diga
seja o presidente dos Estados Unidos-, suspeita-se imediatamente
da sua sanidade mental. De todo
modo, eu não obedeceria.
Mas a segunda razão é ainda mais
séria. É que, se isso estivesse realmente acontecendo, então Deus me
estaria mandando fazer uma coisa
má: uma coisa inteiramente, indiscutivelmente, inapelavelmente errada. Ora, não posso contemplar tal
hipótese. Logo, isso não poderia estar acontecendo. Eu pensaria antes
que, ou não havia ninguém ali, e eu
estava simplesmente a delirar, ou
havia alguém de fato ali, mas se tratava de um impostor -talvez até de
um demônio-, mas não de Deus,
pois seria impensável que Deus me
mandasse fazer uma coisa errada: e
que coisa poderia ser mais errada do
que aquela? Em suma, eu não obedeceria.
Mas levemos a coisa ainda mais
longe. Suponhamos que, por alguma
razão inconcebível, fosse incontornável a evidência de que ali se encontrava Deus. Ouso dizer que, ainda assim, eu não mataria meu filho
ou amigo: eu não mataria sequer um
estranho. Por quê? Porque seria errado. E seria errado, não por causa
dos mandamentos que o próprio
Deus decretara, uma vez que, naquele instante, Ele mesmo os estaria
revogando, mas simplesmente porque, independentemente de qualquer mandamento, é errado matar
uma pessoa. É, portanto, errado matar uma pessoa, ainda que Deus não
exista. Logo, ao contrário do que
afirma a tese do personagem de
Dostoiévski, nem tudo é permitido,
ainda que Deus não exista.
O leitor terá sem dúvida lembrado
que, na Bíblia (Gn 22), Abraão se encontrou na situação em que me imaginei no experimento de pensamento. Com efeito, Deus pôs Abraão à
prova, ordenando-lhe que matasse o
seu filho primogênito. Ao contrário
de mim (e do leitor que se pôs na minha pele), Abraão se dispôs a obedecer e, quando já havia pegado a faca
para sacrificar seu filho, foi impedido por um anjo, enviado por Deus.
Como se sabe, foi sobre esse episódio que Kierkegaard escreveu as páginas impressionantes de "Temor e
Tremor". Nelas, ele mostra que, do
ponto de vista puramente ético, não
se justificaria a prontidão de Abraão.
Só a fé -superior, segundo Kierkegaard, à ética, por constituir uma relação individual e absoluta com
Deus- justifica a atitude de Abraão.
Desse modo, graças à religião, a esfera da ética é relativizada pela da fé.
Sendo assim, devemos inverter a
tese de Ivan Karamazov: não só não
é verdade que, se Deus não existe,
tudo é permitido -já que, como vimos, não é permitido matar-, mas,
ao contrário, é se Deus existir que
tudo é permitido.
Longe de ser o fundamento da ética, a fé em Deus é a condição de relativizar e, no limite, negar a ética. Isso
lembra as palavras do físico norte-americano Steven Weinberg, detentor do Prêmio Nobel de Física: "Com
ou sem religião, as pessoas bem-intencionadas farão o bem e as pessoas mal-intencionadas farão o mal;
mas, para que as pessoas bem-intencionadas façam o mal, é preciso religião".
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