São Paulo, terça, 21 de abril de 1998

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ENSAIO
Um chinês contra a tirania

da Redação

Leia abaixo os principais trechos de texto inédito no Brasil de Octavio Paz publicado pela revista "Vuelta", que dirigia, em abril do ano passado. Nele (que, originalmente, chama-se "Traços"), o ensaísta discute as reflexões filosóficas do poeta e pensador chinês Chuang-Tzu, um adversário teórico do confucionismo.

OCTAVIO PAZ


Em 1957 fiz algumas traduções de breves textos de clássicos chineses. O formidável obstáculo da língua não me deteve e, sem respeito por sua filologia, traduzi do inglês e do francês. Me pareceu que esses textos deveriam ser traduzidos ao espanhol não só por sua beleza -construções ao mesmo tempo geométricas e aéreas, fantasias temperadas sempre por um sorriso irônico- se não também porque cada um deles destila, por assim dizê-lo, sabedoria. Me moveu um impulso muito natural, ainda que, no México, mal pago: compartilhar o prazer que tinha experimentado ao lê-los. Os publiquei, nesse mesmo ano, em "México en la Cultura", o suplemento literário de "Novidades", que era dirigido por Fernando Benítez. Mais tarde reuni esses apólogos e ensaios curtos -alguns muito perto do que chamamos "poema em prosa"- em "Versiones y Diversiones" (1974), sob um título bem ambíguo: "Traços". Exclui unicamente os fragmentos de Chuang-Tzu. Agora os recolho. Creio que Chuang-Tzu não é só um filósofo notável como também um grande poeta. É o mestre do paradoxo e do humor, pontes suspensas entre o conceito e a iluminação sem palavras.
México, abril de 1996.

CHUANG-TZU, UM CONTRAVENENO
Pouco ou nada se sabe sobre Chuang-Tzu, salvo as anedotas, discursos e ensaios que aparecem no seu livro (que ostenta também o nome do seu autor).
Chuang-Tzu viveu em meados do século 4º a. C., numa época de intensa atividade intelectual e de grande instabilidade política. Como no caso das repúblicas italianas do renascimento ou das cidades gregas a época clássica, as querelas que dividiam príncipes e pequenos Estados corriam emparelhadas com a fecundidade dos espíritos e com a originalidade e valentia da especulação. Para grandes males, grandes remédios. Um pouco mais tarde os Ch'n (212-206 a.C.) unificaram ao país e fundaram o primeiro império histórico. Desde então, até a queda da última dinastia no nosso século, a China viveu das idéias inventadas no período dos Reinos Combatentes. Durante dois milênios não fez mais que aperfeiçoá-las, podá-las, expandi-las ou adaptá-las às condições e circunstâncias históricas. A filosofia, ou melhor: a moral -e melhor ainda: a política- de Confúcio (Kung-Fu-Tzu) e seus grandes sucessores ( Mo-Tzu ou Mencio) foram o fundamento da vida social; seus princípios regiam ao mesmo tempo a vida da cidade e da família. Mas a ortodoxia confuciana não deixou de ter rivais; os mais poderosos foram o taoísmo e, mais tarde, o budismo. Ambas tendências prejudicam a passividade, a indiferença frente ao mundo, o esquecimento dos deveres sociais e familiares, a busca de um estado de perfeita beatitude, a dissolução do eu numa realidade indizível. À diferença do budismo -corrente de fora- o taoísmo não nega o eu nem a pessoa; ao contrario, os afirma ante o Estado, a família e a sociedade. O taoísmo é um dissolvente. Não é estranho que os confucionistas o vissem como uma tendência anti-social, inimiga da sociedade e do Estado. No taoísmo há um persistente tom anárquico.
Os pais do taoísmo (Lao-Tzu e Chuang-Tzu) lembram às vezes os filósofos pré-socráticos; outras, os cínicos, os estóicos e os céticos. Também, já na idade moderna, a Thoreau. Longe de se perder nas especulações metafísicas do budismo, os taoístas não esqueciam nunca o homem concreto que, para eles, é o homem natural. Seus emblemas são o pedaço de madeira sem entalhar e a água, que adquire sempre a forma da rocha, do do solo que a contém. O homem natural é dúctil e brando como a água, como ela, é transparente. É possível ver o seu fundo e no seu fundo todos podem se ver. O sábio é o rosto de todos os homens.
Dividi a minha brevíssima seleção em três seções. A primeira se refere a lógica e a dialética. A crítica de Chuang-Tzu às especulações intelectuais dos lógicos aparece numa série de apólogos e contos em que o humor se alia ao raciocínio. Muitos entre eles assumem a forma de um diálogo entre Hui-Tzu, o intelectual, e Chuang-Tzu (o seu mestre : Lao-Tzu). Ante às sutilezas do dialético, o sábio verdadeiro recorre, sorridente, ao conhecido método de reductio ad absurdum. Na nossa época, cheia de filosofias e raciocínios cortantes (prelúdio necessário das atrozes operações de cirurgia social que hoje executam os políticos, discípulos dos filósofos), nada mais saudável que divulgar alguns diálogos cheios sabedoria. Essas anedotas nos ensinam a desconfiar de quimeras da razão e, sobre tudo, a ter piedade dos homens.
A segunda seção está composta por fragmentos sobre a moral. Com maior rancor ainda que os dialéticos e os filósofos, Chuang-Tzu ataca os moralistas. O arquétipo do moralista é Confúcio. Sua moral é a do equilíbrio social; seu fundamento é a autoridade dos seis livros clássicos, depositários do saber de uma mítica idade de ouro em que reinavam a virtude e a piedade filial. A virtude (jen) era concebida como um composto de benevolência, retidão e justiça, encarnação ao culto do imperador e dos antepassados. A ação do sábio, essencialmente política, consistia em preservar a herança do passado e, assim, manter o equilíbrio social. Este, por sua vez, era só o reflexo da ordem cósmica. Cosmologia política. Nós, em espanhol, temos uma palavra que da uma certa idéia do termo chinês: fidalguia. Mas o fidalgo é um cavalheiro; venera o passado, mas não vê nele um principio cósmico nem uma ordem fundada no movimento da natureza. O discípulo de Confúcio é um mandarim: um letrado, um funcionário e um pai de família.
O caráter utilitário e conservador da filosofia de Confúcio, seu respeito supersticioso pelos livros clássicos, seu culto à lei e, sobretudo, sua moral feita de prêmios e castigos, eram tendências que inspiravam repugnância a um filósofo-poeta como Chuang -Tzu. Sua crítica à moral foi também uma crítica ao Estado e ao que comumente se chama o bem e o mal. Quando os virtuosos -os filósofos, os que acreditam que sabem o que é bom e o que é mal- tomam o poder, instauram a tirania mais insuportável: a dos justos. O reino dos filósofos, nos diz Chuang-Tzu, se transforma fatalmente em despotismo e terror. Frente a essa sociedade de justos e criminosos, de leis e castigos, Chuang-Tzu postula uma comunidade de ermitãos e de gente simples. A sociedade de sábios rústicos. Nela não há governo nem tribunais nem técnica; ninguém leu um livro, ninguém quer ganhar mais do que o necessário, ninguém teme a morte porque ninguém ninguém pede nada à vida. A lei do céu, a lei natural, rege os homens como rege a mudança das estações. A sociedade de Confúcio, imperfeita como todo ser humano, se realizou e se converteu no ideário e no padrão ideal de um império que durou 2.000 anos. A sociedade de Lao-Tzu e de Chuang-Tzu é irrealizável, mas a crítica que os dois fazem à civilização merecem a nossa simpatia. Nossa época ama o poder, adora o êxito, a fama, a eficácia, a utilidade e sacrifica todos os seus ídolos. É consolador saber que, há 2.000 anos, alguém pregava o contrário: a escuridão, a insegurança, e a ignorância, ou seja, a sabedoria e o não o conhecimento.
Na terceira seção procurei agrupar alguns textos sobre o que poderia ser chamado o homem perfeito. O sábio, o santo, é aquele que está em relação, em contato, com os poderes naturais. O sábio realiza milagres porque é um ser em estado natural e só a natureza é quem realiza milagres. Mas é melhor ceder a palavra a Chuang-Tzu.

O DIALÉTICO
Utilidade da inutilidade
Hui-Tzu disse a Chuang-Tzu: "Seus ensinamentos não tem nenhum valor prático". Chuang-Tzu respondeu: "Só os que conhecem o valor do inútil pode falar do que é útil. A terra sobre a qual pisamos é imensa, mas essa imensidão não tem valor prático: a única coisa que precisamos para caminhar é o espaço que cobre as nossas plantas. Suponha que alguém perfura o solo em que pisamos, até cavar um enorme abismo que chegasse até a Fonte Amarela: teriam algum valor os dois pedaços de terra sobre os quais se apóiam nossos pés?". Hui-Tzu retrucou: "Realmente seriam inúteis". O mestre concluiu: "Logo, é evidente a utilidade da inutilidade."

Sobre a linguagem
"Vejamos o que acontece com as palavras", disse Chuang-Tzu, parodiando os lógicos e dialéticos. "Não sei quais entre elas estão em relação direta com a realidade que pretendem nomear e quais não estão. Se algumas estivessem e outras não, pode concluir-se que as primeiras seriam indistinguíveis das últimas. A título de prova, direi algumas palavras: se houve um princípio, houve um tempo anterior ao princípio do princípio, em consequência, houve um tempo anterior ao tempo anterior ao princípio, que por sua vez... Se há ser, há o não ser; se houve um tempo antes do ser começar a ser, também houve um tempo antes do tempo antes do não-ser começar a ser.... poderia continuar assim, quando nem sequer sei com certeza se o ser é o que é, e o não-ser é o que não é. Dessa maneira continuaríamos até chegar ao ponto em que um matemático -para não chegar a uma pessoa comum e corrente como eu- teria dificuldade em seguir-nos.



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