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Os brasileiros em Nova York perdem as ilusões
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
O sentimento que toma os
brasileiros aqui em Nova York
é um "blend" de despeito com
medo, como crianças no mundo de adultos. Os brasileiros
no exterior dividem-se em: os
que fingem que não são brasileiros e os que ostentam alegremente essa condição, cantando "Mamãe eu quero" nos restaurantes (apud L. F. Veríssimo).
Eu sou o terceiro tipo: o
"ex-combatente". Nem americano nem gargalhante consumista, eu ando em Nova York
como um ex-combatente em
terra inimiga. Sou soldado de
uma guerra que ninguém sabe
que aconteceu, mas que foi o
delírio maior de minha geração.
Ah, que saudades do "imperialismo norte-americano"!
Como era boa a velha antinomia colônia-metrópole! Por
exclusão, éramos alguém.
"Não sermos" americanos nos
definia. Éramos as "vítimas" e
essa condição dava sentido a
nossas vidas.
Que teria sido de mim sem o
imperialismo? Não éramos
atrasados, éramos "explorados" e essa dor nos absolvia e
santificava. Nossa grandeza
vinha dessa destituição, dessa
imensa "posse" de misérias.
Penso na solidão do antigo
chamado "homem do Terceiro
Mundo", enquanto ando pela
Broadway. Penso nas ruas do
Rio. Lá todo mundo anda
meio sem rumo, embalado por
uma ilusão de presente. Não
há "esperanças" no ar. Só os
bens sendo consumidos, só as
vitrinas enfeitadas, as mercadorias. Ninguém quer "chegar
a nada". As pessoas já "estão
lá". Aqui, não há essências. O
sentido prático dos americanos, um sentimento de parcialidade que já foi tomado como
"alienação", denota uma humildade não-européia diante
da morte e do mistério. O que
sempre pareceu burrice revela-se uma sabedoria. Ficou óbvio que o "tesouro da essência"
não passa de uma persistência
divinista. O culto do indivíduo
sagrado e superior é um velho
mito ibérico. O brasileiro culto
tem a nostalgia de uma grandeza que ninguém sabe bem
qual é. O mito do "grande herói mártir". A América não
tem heróis que fracassam, como Tiradentes; tem heróis práticos. Paul Revere foi hábil e
rápido, não um mártir. FHC
ao menos tem o mérito de falar
em "utopia concreta", de instalar o "administrativo" como
meta porque, no Brasil, ou estamos no passado ou "em
trânsito". Aqui nos Estados
Unidos, ninguém pensa em
conjuntos. Só em partes.
Aqui na Broadway, ninguém
está pensando em Karl Marx.
E eu não consigo tirar esse homem da minha cabeça. Que
cacete sou eu, inferior e "superior" a essa "alienação capitalista" e cada vez mais esquecido e ridículo?
Como fica tênue nosso passado de vítimas do imperialismo.
Sinto-me um babaca aqui em
Nova York (dirão meus inimigos que finalmente "me encontrei"...). Ouço as sirenes em
Nova York. Não param de uivar os carros de polícia, de
bombeiros. Por que essa ostentação permanente da lei, da
ordem? De repente, me bate
uma luz: quanto mais organizada a sociedade civil, menos
necessidade de intelectuais!
Aqui eles precisam de especialistas, parcializados, com mira
certa. O sujeito que começa a
falar em generalidades, em
"futuro promissor" é despedido.
Na América Latina, o intelectual sempre foi um pneu-estepe, um quebra-galho para a
ausência de representação institucional. Como não tínhamos "sociedade civil", tínhamos o "grande homem", que
nos substituía. Assim foi José
Marti, assim foi Sarmiento, assim foi José Bonifácio, o Barão
de Rio Branco. Até hoje. Vejam. FHC é o último filho de
Rui Barbosa, o último elo dessa corrente que pode se quebrar. Sozinho, FHC é a própria
"teoria da dependência"; ele
tenta fazer com o PFL o que
acha que os países periféricos
devem fazer com os USA: usar
a "dependência" para descolar
umas migalhas, por meio do
que os economistas liberais
chamam de "trickle down effect" ("efeito de escorrimento"
-parece doença de senhoras...). Para os cientistas políticos americanos, a palavra
"utopia" é pejorativa, causa
genocídios como os de Mao ou
do nosso herói sangrento Pol
Pot, formado no Quartier Latin.
No Brasil, sempre buscamos
a "utopia", usando as "idéias
fora de lugar". No fim do século 19, importamos o liberalismo em plena escravidão. Nesse
século, tivemos o marxismo
sem povo. Agora, temos o neoliberalismo sem capital.
Mas, nossa esperança sempre
foi comoventemente mutante.
A cada porrada da realidade,
íamos mudando a "revolução". Das certezas duras de
pré-64, passamos ao culto da
"dúvida", por onde uma fecunda revisão dos dogmas levaria "a novos níveis de luta".
Levou a 68. Depois, a esquerda
ofereceu o corpo na guerrilha
suicida, enquanto outra esquerda fritava a cuca na piração das drogas, tudo para não
perder o vazio que nos enriquecia. E as porradas aumentavam. Lembro-me de Dusan
Makavejev, o cineasta anarquista da Iugoslávia, me dizendo em Las Vegas: "Isso não
é o pesadelo do capitalismo; isso é o sonho do proletariado!"
Senti ali que começava a falecer o tesouro maior dos intelectuais: a utopia. O mercado
estava ganhando. Não adiantava criticar negativamente o
mundo, que o mundo pouco se
lixava para as teorias.
E diante da grande Las Vegas que o mundo virou, os intelectuais não sabem o que fazer. Antes se identificavam
com a pureza proletária e queriam ir colher arroz na China
ou cana em Cuba, todos acreditávamos que o mundo era
planejável, a partir do zero. A
ilusão de controle acabou. O
mundo anda sozinho; só dá
para mexer numas coisinhas
práticas. E as palavras passaram a ser: eficiência, competitividade. A cultura européia
foi sendo substituída por "serviços americanos". E, se antes
falávamos de "síntese", passamos a falar do "fragmentário"
como se fosse uma nova "totalidade". Eu, com minha funda
ignorância, acho que isso acaba sendo um avanço para o
pensamento; com essa relativização das ideologias, a reflexão fica mais realista. Utopia
acabou sendo apenas projeto
de miserável. País rico pensa
em melhorar os esgotos.
No meio dessas divagações,
sou tomado de uma súbita fome e ataco uma carrocinha de
cachorro-quente. O indiano
me pergunta se quero molho.
"Bastante cebola!", respondo e
caio de boca no sanduíche
quente. O oriental pergunta-me de onde eu sou. Do Brasil. Olhou-me como um colega.
"Eu também vim de um país
desgraçado", me disse. "Bangladesh". E enquanto ele falava sem parar sobre miséria,
maremotos, da família faminta lá na Ásia que ele sustentava com as micharias que ganhava com cachorro-quente,
eu pensava: "Meu Deus, como
poderei viver sem Marx?"
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