São Paulo, terça, 21 de abril de 1998

Texto Anterior | Índice

Os brasileiros em Nova York perdem as ilusões

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

O sentimento que toma os brasileiros aqui em Nova York é um "blend" de despeito com medo, como crianças no mundo de adultos. Os brasileiros no exterior dividem-se em: os que fingem que não são brasileiros e os que ostentam alegremente essa condição, cantando "Mamãe eu quero" nos restaurantes (apud L. F. Veríssimo).
Eu sou o terceiro tipo: o "ex-combatente". Nem americano nem gargalhante consumista, eu ando em Nova York como um ex-combatente em terra inimiga. Sou soldado de uma guerra que ninguém sabe que aconteceu, mas que foi o delírio maior de minha geração.
Ah, que saudades do "imperialismo norte-americano"! Como era boa a velha antinomia colônia-metrópole! Por exclusão, éramos alguém. "Não sermos" americanos nos definia. Éramos as "vítimas" e essa condição dava sentido a nossas vidas.
Que teria sido de mim sem o imperialismo? Não éramos atrasados, éramos "explorados" e essa dor nos absolvia e santificava. Nossa grandeza vinha dessa destituição, dessa imensa "posse" de misérias.
Penso na solidão do antigo chamado "homem do Terceiro Mundo", enquanto ando pela Broadway. Penso nas ruas do Rio. Lá todo mundo anda meio sem rumo, embalado por uma ilusão de presente. Não há "esperanças" no ar. Só os bens sendo consumidos, só as vitrinas enfeitadas, as mercadorias. Ninguém quer "chegar a nada". As pessoas já "estão lá". Aqui, não há essências. O sentido prático dos americanos, um sentimento de parcialidade que já foi tomado como "alienação", denota uma humildade não-européia diante da morte e do mistério. O que sempre pareceu burrice revela-se uma sabedoria. Ficou óbvio que o "tesouro da essência" não passa de uma persistência divinista. O culto do indivíduo sagrado e superior é um velho mito ibérico. O brasileiro culto tem a nostalgia de uma grandeza que ninguém sabe bem qual é. O mito do "grande herói mártir". A América não tem heróis que fracassam, como Tiradentes; tem heróis práticos. Paul Revere foi hábil e rápido, não um mártir. FHC ao menos tem o mérito de falar em "utopia concreta", de instalar o "administrativo" como meta porque, no Brasil, ou estamos no passado ou "em trânsito". Aqui nos Estados Unidos, ninguém pensa em conjuntos. Só em partes.
Aqui na Broadway, ninguém está pensando em Karl Marx. E eu não consigo tirar esse homem da minha cabeça. Que cacete sou eu, inferior e "superior" a essa "alienação capitalista" e cada vez mais esquecido e ridículo?
Como fica tênue nosso passado de vítimas do imperialismo. Sinto-me um babaca aqui em Nova York (dirão meus inimigos que finalmente "me encontrei"...). Ouço as sirenes em Nova York. Não param de uivar os carros de polícia, de bombeiros. Por que essa ostentação permanente da lei, da ordem? De repente, me bate uma luz: quanto mais organizada a sociedade civil, menos necessidade de intelectuais! Aqui eles precisam de especialistas, parcializados, com mira certa. O sujeito que começa a falar em generalidades, em "futuro promissor" é despedido.
Na América Latina, o intelectual sempre foi um pneu-estepe, um quebra-galho para a ausência de representação institucional. Como não tínhamos "sociedade civil", tínhamos o "grande homem", que nos substituía. Assim foi José Marti, assim foi Sarmiento, assim foi José Bonifácio, o Barão de Rio Branco. Até hoje. Vejam. FHC é o último filho de Rui Barbosa, o último elo dessa corrente que pode se quebrar. Sozinho, FHC é a própria "teoria da dependência"; ele tenta fazer com o PFL o que acha que os países periféricos devem fazer com os USA: usar a "dependência" para descolar umas migalhas, por meio do que os economistas liberais chamam de "trickle down effect" ("efeito de escorrimento" -parece doença de senhoras...). Para os cientistas políticos americanos, a palavra "utopia" é pejorativa, causa genocídios como os de Mao ou do nosso herói sangrento Pol Pot, formado no Quartier Latin.
No Brasil, sempre buscamos a "utopia", usando as "idéias fora de lugar". No fim do século 19, importamos o liberalismo em plena escravidão. Nesse século, tivemos o marxismo sem povo. Agora, temos o neoliberalismo sem capital.
Mas, nossa esperança sempre foi comoventemente mutante. A cada porrada da realidade, íamos mudando a "revolução". Das certezas duras de pré-64, passamos ao culto da "dúvida", por onde uma fecunda revisão dos dogmas levaria "a novos níveis de luta". Levou a 68. Depois, a esquerda ofereceu o corpo na guerrilha suicida, enquanto outra esquerda fritava a cuca na piração das drogas, tudo para não perder o vazio que nos enriquecia. E as porradas aumentavam. Lembro-me de Dusan Makavejev, o cineasta anarquista da Iugoslávia, me dizendo em Las Vegas: "Isso não é o pesadelo do capitalismo; isso é o sonho do proletariado!" Senti ali que começava a falecer o tesouro maior dos intelectuais: a utopia. O mercado estava ganhando. Não adiantava criticar negativamente o mundo, que o mundo pouco se lixava para as teorias.
E diante da grande Las Vegas que o mundo virou, os intelectuais não sabem o que fazer. Antes se identificavam com a pureza proletária e queriam ir colher arroz na China ou cana em Cuba, todos acreditávamos que o mundo era planejável, a partir do zero. A ilusão de controle acabou. O mundo anda sozinho; só dá para mexer numas coisinhas práticas. E as palavras passaram a ser: eficiência, competitividade. A cultura européia foi sendo substituída por "serviços americanos". E, se antes falávamos de "síntese", passamos a falar do "fragmentário" como se fosse uma nova "totalidade". Eu, com minha funda ignorância, acho que isso acaba sendo um avanço para o pensamento; com essa relativização das ideologias, a reflexão fica mais realista. Utopia acabou sendo apenas projeto de miserável. País rico pensa em melhorar os esgotos.
No meio dessas divagações, sou tomado de uma súbita fome e ataco uma carrocinha de cachorro-quente. O indiano me pergunta se quero molho. "Bastante cebola!", respondo e caio de boca no sanduíche quente. O oriental pergunta-me de onde eu sou. Do Brasil. Olhou-me como um colega. "Eu também vim de um país desgraçado", me disse. "Bangladesh". E enquanto ele falava sem parar sobre miséria, maremotos, da família faminta lá na Ásia que ele sustentava com as micharias que ganhava com cachorro-quente, eu pensava: "Meu Deus, como poderei viver sem Marx?"



Texto Anterior | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.