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FERREIRA GULLAR
Pesadelos
Se a vida é inventada, não tem sentido sentar e chorar: temos que buscar seguir em frente
PARECE QUE todo mundo tem
um tipo de pesadelo que se
repete sem que haja explicação. Pode até ser que Freud explique, mas isso não nos cura. Meu pesadelo contumaz é um que me põe
sempre aflito, num beco sem saída:
tomo um ônibus que segue para algum lugar e de repente me encontro sozinho num descampado, certo de que tão cedo não passará ali
ônibus nenhum, carro nenhum,
pessoa nenhuma. Estou perdido,
penso apavorado, e acordo. Era sonho, apenas sonho, que alívio!
Mas nesta noite não sonhei com
coisa nenhuma. Acordei e fui à porta da sala pegar o jornal. Na cozinha, tomei um gole de café e então
me sentei junto à janela para lê-lo.
E logo me deparo com a notícia de
que um estudo científico baseado
em observações feitas por satélite
indica que, em alguns poucos anos,
metade de ilha de Marajó estará
submersa. É que o planeta está esquentando, as calotas polares derretendo e, em breve, todas as cidades situadas à beira-mar estarão
parcialmente ou totalmente sob as
águas oceânicas.
Entro em pânico: moro em Copacabana, a uma esquina e meia da
praia. A primeira coisa que me vem
à cabeça atormentada é a célebre
frase "après moi, le deluge". Sim,
mas o apartamento é um bem da família, meu pessoal vai ficar a ver navios? E meus livros, meus quadros,
irá tudo por águas abaixo?
Decido mudar de assunto e buscar outras notícias. Passo a página e
leio: "O Brasil é pior que o Haiti em
repetência escolar". Não acredito:
quer dizer que a pequena vantagem
que tínhamos obtido sobre o Haiti
em matéria de crescimento econômico em breve vai desaparecer?
Claro, quanto mais baixo o nível da
educação, menor é o crescimento
econômico... E lá enveredo eu por
um túnel escuro sem luz no final.
Dobro o jornal, fecho os olhos e digo a mim mesmo: "Não se pode perder a esperança".
Claro, a vida é inventada, não fui
eu mesmo que inventei esta teoria?
Se a vida é inventada, não tem sentido sentar na calçada e chorar: temos que buscar o caminho novo e
seguir em frente.
Depois de um tempo, respiro fundo e, convencido de minha própria
teoria, volto ao jornal com ânimo
novo e leio: "Grávida de 16 anos
morre baleada". Fico firme e decido
ler a notícia com o necessário distanciamento: grávida de oito meses,
Erenilda da Silva foi vítima de duas
balas perdidas durante um tiroteio
entre policiais e traficantes do morro Santo Amaro, no Catete.
Esses tiroteios se sucedem em vários pontos da cidade, não apenas
nos morros e favelas, mas em avenidas e ruas residenciais. Estaremos
nos aproximando de uma guerra civil? É quando me lembro da ameaça feita por um dirigente do MST
(Movimento dos Sem-Terra) de
que, em breve, a luta que se desenvolve no campo tomará conta das
cidades. Teremos, então, uma
aliança entre os sem-terra, os sem-teto e os traficantes para tomar o
poder das mãos da burguesia? Antes que me acuse a mim mesmo de
mísero lacaio do agronegócio, procuro na página assunto menos controvertido, e eis o que acho: "A farra
da gasolina na Câmara vai ficar impune".
Tomo-me de indignação ao recordar a denúncia que li no dia anterior a propósito dos deputados federais que consomem combustível
em quantidade suficiente para 431
viagens à Lua ou mais de 50 viagens, ida e volta, de Manaus a Porto
Alegre. Está explicado: é justamente por viajarem tanto que não têm
tempo de votar as leis necessárias
ao país.
Tudo isso me passa pela mente
enquanto meus olhos descobrem
no jornal que um rapaz de 17 anos
estrangulou a mãe, porque ela insistia que ele estudasse em vez de
vagabundar. Mas o padrasto declara que o jovem matricida não consome drogas, é calmo e que a morte
da mãe foi um acidente. Concordo,
pescoço de mãe há que apertar com
pouca força.
Diante desse panorama barra-pesada (mais um tiroteio, agora no
centro da cidade), tento fugir do pesadelo e descubro que não posso,
pois não estou dormindo. Este é o
pesadelo de que não se pode mesmo acordar.
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