São Paulo, domingo, 21 de maio de 2006

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FERREIRA GULLAR

Pesadelos

Se a vida é inventada, não tem sentido sentar e chorar: temos que buscar seguir em frente

PARECE QUE todo mundo tem um tipo de pesadelo que se repete sem que haja explicação. Pode até ser que Freud explique, mas isso não nos cura. Meu pesadelo contumaz é um que me põe sempre aflito, num beco sem saída: tomo um ônibus que segue para algum lugar e de repente me encontro sozinho num descampado, certo de que tão cedo não passará ali ônibus nenhum, carro nenhum, pessoa nenhuma. Estou perdido, penso apavorado, e acordo. Era sonho, apenas sonho, que alívio!
Mas nesta noite não sonhei com coisa nenhuma. Acordei e fui à porta da sala pegar o jornal. Na cozinha, tomei um gole de café e então me sentei junto à janela para lê-lo. E logo me deparo com a notícia de que um estudo científico baseado em observações feitas por satélite indica que, em alguns poucos anos, metade de ilha de Marajó estará submersa. É que o planeta está esquentando, as calotas polares derretendo e, em breve, todas as cidades situadas à beira-mar estarão parcialmente ou totalmente sob as águas oceânicas.
Entro em pânico: moro em Copacabana, a uma esquina e meia da praia. A primeira coisa que me vem à cabeça atormentada é a célebre frase "après moi, le deluge". Sim, mas o apartamento é um bem da família, meu pessoal vai ficar a ver navios? E meus livros, meus quadros, irá tudo por águas abaixo?
Decido mudar de assunto e buscar outras notícias. Passo a página e leio: "O Brasil é pior que o Haiti em repetência escolar". Não acredito: quer dizer que a pequena vantagem que tínhamos obtido sobre o Haiti em matéria de crescimento econômico em breve vai desaparecer? Claro, quanto mais baixo o nível da educação, menor é o crescimento econômico... E lá enveredo eu por um túnel escuro sem luz no final. Dobro o jornal, fecho os olhos e digo a mim mesmo: "Não se pode perder a esperança".
Claro, a vida é inventada, não fui eu mesmo que inventei esta teoria? Se a vida é inventada, não tem sentido sentar na calçada e chorar: temos que buscar o caminho novo e seguir em frente.
Depois de um tempo, respiro fundo e, convencido de minha própria teoria, volto ao jornal com ânimo novo e leio: "Grávida de 16 anos morre baleada". Fico firme e decido ler a notícia com o necessário distanciamento: grávida de oito meses, Erenilda da Silva foi vítima de duas balas perdidas durante um tiroteio entre policiais e traficantes do morro Santo Amaro, no Catete.
Esses tiroteios se sucedem em vários pontos da cidade, não apenas nos morros e favelas, mas em avenidas e ruas residenciais. Estaremos nos aproximando de uma guerra civil? É quando me lembro da ameaça feita por um dirigente do MST (Movimento dos Sem-Terra) de que, em breve, a luta que se desenvolve no campo tomará conta das cidades. Teremos, então, uma aliança entre os sem-terra, os sem-teto e os traficantes para tomar o poder das mãos da burguesia? Antes que me acuse a mim mesmo de mísero lacaio do agronegócio, procuro na página assunto menos controvertido, e eis o que acho: "A farra da gasolina na Câmara vai ficar impune".
Tomo-me de indignação ao recordar a denúncia que li no dia anterior a propósito dos deputados federais que consomem combustível em quantidade suficiente para 431 viagens à Lua ou mais de 50 viagens, ida e volta, de Manaus a Porto Alegre. Está explicado: é justamente por viajarem tanto que não têm tempo de votar as leis necessárias ao país.
Tudo isso me passa pela mente enquanto meus olhos descobrem no jornal que um rapaz de 17 anos estrangulou a mãe, porque ela insistia que ele estudasse em vez de vagabundar. Mas o padrasto declara que o jovem matricida não consome drogas, é calmo e que a morte da mãe foi um acidente. Concordo, pescoço de mãe há que apertar com pouca força.
Diante desse panorama barra-pesada (mais um tiroteio, agora no centro da cidade), tento fugir do pesadelo e descubro que não posso, pois não estou dormindo. Este é o pesadelo de que não se pode mesmo acordar.


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