São Paulo, sexta-feira, 21 de maio de 2010

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CARLOS HEITOR CONY

O ovo e a galinha


Eu andava descrente do Deus judaico-cristão, descrente de Marx e dos bispos da televisão


DEPOIS DE certo tempo, começamos a desconfiar de que nada temos a aprender. E mais: o mundo se torna chato, estéril. Tudo parece um filme que já vimos. Talvez seja a velhice, talvez seja a sabedoria, ou ambas as coisas, ou nenhuma. Deixa para lá.
Mas, no meu caso, folgo regiamente ao saber que sempre estou aprendendo alguma coisa.
Eis que, na semana passada, estando em sossego, olhando as estantes e pensando em problemas prosaicos do dia a dia (comprar um tênis novo, descolar um marceneiro para fazer novas estantes, instalar uma pia maior na cozinha, essas coisas), topei com um livro do aiatolá Khomeini do qual não me lembrava (aliás, tinha esquecido o próprio aiatolá e ainda mais que ele era autor de livros).
Um deles tem título genérico e esclarecedor: "A Explicação dos Problemas".
Sei que a plebe ignora, mas sou também autor de livros, com títulos vários e sofríveis, alguns até bem disfarçados, outros nem tanto.
Mas, sinceramente, eis o título que me faltava ao livro que nunca pensei em escrever: explicar os problemas. Só mesmo a sabedoria oriental seria capaz disso.
O Ocidente é que nem o Chacrinha: ele não veio para explicar, mas para confundir.
Tudo se complicou para nós, ocidentais. Creio que, no fundo, o homem ocidental é um torturado pelo problema que, até hoje, não teve explicação: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha?
Dos silogismos de Sócrates às deduções de Descartes, passando pela lógica de Aristóteles, pela crítica de Kant e pela dialética de Hegel, o Ocidente nunca explicou esse problema: o ovo ou a galinha em primeiro lugar?
Não podendo resolver essa crucial questão, o homem ocidental tratou de outros problemas, prosaicos como os meus acima aludidos: inventou a bomba atômica, a bicicleta, a tesourinha de unha e a fita durex.
Já o homem oriental tem o furo mais em cima. Ele explica realmente os problemas: não há problema nenhum. Leio o livro do aiatolá: é um repositório de sabedoria e de fecundos ensinamentos para a vida moral e prática.
Fiquei sabendo, por exemplo, que, aos olhos de um muçulmano fundamentalista, que aceita e propaga a sabedoria do aiatolá, sou uma criatura impura, que não posso sodomizar jumentos, camelos e carneiros sob pena de tornar impura a carne desses nobres animais.
Alá é testemunha de que a minha vil concupiscência nunca chegou a tanto. Não cobiço jumentos, camelos e carneiros.
Mas, passando para outro programa, vejo também que, pela sadia doutrina do aiatolá, não posso ter filhos com a irmã da minha sogra, com a tia da minha prima (que pode ser minha própria mãe). Deus é testemunha de que nunca pensei em ter filhos com elas.
Em compensação, desde que faça certas abluções e tenha os olhos e o coração voltados para Meca, posso ter relações sexuais com o pai, o filho e os primos de minha mulher -outro tipo de excitação que os meus pervertidos sentidos, até hoje, ainda não tiveram.
Já senti ímpetos de me converter ao Islã. Juro por Alá.
Eu andava em crise espiritual, descrente do Deus judaico-cristão, descrente de Marx e dos bispos que aparecem na TV.
Infelizmente resisti à tentação e saí perdendo.
Nada tenho contra os crentes, sejam os de Alá, os de Javé, os de Jesus ou os de Marx. Mas prefiro não acreditar em nada. E ter minha vida sexual ditada por mim mesmo, por minhas glândulas, sem pensar em Meca, sem outra satisfação que não a da própria carne -pasto de vermes e de espantos.
Neste particular, com raríssimas exceções de circunstância e modo, dou-me por satisfeito.
Quanto ao finado aiatolá, acho que se trata de um anjo exterminador que está faltando ao Ocidente. Precisamos urgentemente de um cara esclarecido que nos explique os problemas.
A seleção do Dunga, por exemplo. E a erupção daquele vulcão na Islândia cujo nome complicado é um problema em si. Sem faltar, é claro, a emocionante questão do ovo e da galinha.
De minha parte, gostaria que me explicassem de uma vez por todas a insistência com que escrevo diariamente e ninguém toma providências.


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