São Paulo, quarta-feira, 21 de junho de 2000


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Condutor do programa televisivo "Ensaio" vê episódios se transformarem em série de CDs
Fernando Faro - Arquivo vivo da MPB

Patrícia Santos/Folha Imagem
Fernando Faro



Coleção começa com 25 títulos contendo música e depoimentos de nomes históricos da canção popular


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

A história volta a ser contada. Acabam de ser transcritos para CD 25 dos cerca de 400 programas que o produtor Fernando Faro, 64, tem conduzido sob os títulos "Ensaio" (de 69 a 71 e de 89 até hoje) e "MPB Especial" (70-75) nas TVs Tupi e Cultura.
A memória não se faz só de música. A reprodução na íntegra dos programas une as centenas de reinterpretações antológicas e os depoimentos muitas vezes esquecidos de nomes da MPB.
"A Música Brasileira Deste Século por Seus Autores e Intérpretes" é o (longo) título da série. Com continuação prometida para ainda este ano, almeja chegar a 150, 200 volumes, segundo o homem que a levou a cabo, J.C. Botezzeli (conhecido por Pelão), 57. Leia trechos de entrevista em que Fernando Faro rememora mais de 30 anos da MPB.

Folha - Qual foi sua participação efetiva no projeto dos CDs?
Fernando Faro -
Foi só fazer existirem os programas. Depois, a escolha dos nomes e tudo mais ficou por conta do Pelão. Só de uma coisa fiz questão: que a transcrição nos livros fosse absolutamente fiel, até com erros. Não ia aceitar que alguém fosse corrigir Nelson Cavaquinho, Cartola...

Folha - Você pode contar sua história do início?
Faro -
Nasci em Aracaju. Fiquei um pouquinho lá e fui morar em Laranjeiras, a 18 km de Aracaju. Aos 9 anos, fui para o Colégio Salesiano de Aracaju. Assistia missa todo dia, comungava. Como disse Carlos Lyra, minha cota de religião gastei toda nesse tempo. Mas isso existe em mim de uma forma incrível, a idéia do pecado.

Folha - Ela transbordou para seu trabalho com a música brasileira?
Faro -
Ah, debaixo do Equador não existe pecado... Pecado é olhar mulher nua. Essa coisa do pecado você não acha nem no Nelson Cavaquinho, que na canção foi beijar a mulher depois de morta. No colégio, só havia música de igreja. Eu gostava. De música popular, lembro de uma vitrolinha de corda em casa, em que tocava Joubert de Carvalho.
Vim para São Paulo antes dos 18 anos, para fazer direito. Fiz até o terceiro ano, quando saí e fui trabalhar em jornal. Fazia reportagem geral e, depois, coluna de teatro e cinema, que foi o que me levou à antiga rádio Cultura. Aí comecei na TV, só querendo fazer teatro, na TV Paulista, no finzinho dos anos 50. De lá, fui para a Tupi, fiz o "TV de Vanguarda". Pela primeira vez na TV do Brasil se viram Genet, Kafka, André Gide, Thomas Mann. Fiquei nisso até o dia em que alguém falou que Faro era muito difícil para fazer teatro. Quiseram que fizesse musical, porque música o pessoal entende mais. Fui fazer um programa no sábado, 23h30, o "Móbile", misturando música e texto. Cheguei à música e fiquei nela, mas contaminado das outras áreas.

Folha - Por que você criou o modelo de suas perguntas não serem ouvidas pelo espectador?
Faro -
Quando eu trabalhava no jornal da TV Paulista, um dia fui entrevistar um bandido famoso que havia sido preso. Não tinha muito equipamento, então pus dentro da cela, com ele, o gravador e o microfone. Do lado de fora da cela, eu perguntava. "Como você passou por cima do japonês?" "Ah, eu passei porque ele já estava morto." Pus no ar, não apareceu a pergunta, ficou uma coisa recortada, bonita.
Uma tomada geral na TV é nada. Você tem de chegar perto da coisa para mostrar. Quis deixar a pessoa só, de repente começar a mostrar mão, boca, olho. É como se a pessoa fosse abstraída, tirada do quadro, e ficasse só uma história. Volta e meia as pessoas dizem que é negócio de feijoada -orelha, boca, olho. Mas outros fizeram antes de mim -um tal de Salvador Dalí, um tal de Picasso.

Folha - Por que você nunca levou Roberto Carlos ao programa?
Faro -
Há duas pessoas que eu gostaria muito de trazer. Uma é ele. A outra, a Hebe Camargo. É pena que Hebe não queira. Diz que fecho muito a câmera. Com Roberto nunca tive contato maior. Tentei contato, mas nunca tive uma resposta. Queria fazer.

Folha - Há mais figuras imprescindíveis que nunca participaram?
Faro -
Rita Lee e Raul Seixas.

Folha - Os roqueiros...
Faro -
Não, fiz com muitos roqueiros. Lanny Gordin, Lobão... Gilberto Gil nunca foi ao programa. Ele disse um dia que nunca havia feito "Ensaio" porque Faro não convidava. Mas convidei. Uma vez mandou um recado de que queria um roteirinho das perguntas. Não existe isso. Posso chegar para ele e dizer assim: "O que você conhece do Wilson Batista? Toca alguma coisa". Acho que ele se apavora um pouco.
No começo, ele e Caetano não saíam do "Móbile". Acabávamos o programa e íamos comer na rua Augusta. Uma vez estava lá com Geraldo Vandré e Caetano. Chegou a Gal, que foi mostrar uma música de Caetano, "Baby". Geraldo levantou e me disse: "Não aguento ficar aqui, isso não é música brasileira, isso não pode ser". Caetano falou: "Geraldo, não quero mais bem a você". Acabou ali.

Folha - João Gilberto nunca foi?
Faro -
João é outro cara complicadíssimo para gravar entrevista. É um camarada que grava um negócio e amanhã diz: "Não! Não põe no ar! Aquela harmonia está errada, agora faço outra...". As coisas nunca estão acabadas para ele. Fiz com ele o programa "Chega de Saudade", em 71. Os meninos estavam em Londres, e Caetano veio para participar. As fitas disso foram perdidas. Só tenho o áudio. Alguém podia se interessar, mas até agora ninguém.
Em 75, fui para a Globo, onde fiz um programa chamado "Sexta Super", naquela mesma linha que nunca mais deixei de fazer. Fiquei dois anos. Dali, fui para mil TVs, Tupi, Bandeirantes, Record. Até que voltei para a Cultura, em 89.

Folha - Qual foi a declaração mais surpreendente que você já ouviu?
Faro -
Foi a Zilda do Zé. Quando fiz o programa com ela, não havia mais o Zé da Zilda. Toda hora ela falava "meu Zé era muito bonito" -não era-, "meu Zé tinha cabelo encaracolado" -não tinha. De repente ela diz: "Tenho muita saudade do meu Zé", e começa a chorar. Não havia esse Zé, mas se Zilda queria assim, era assim.

Folha - E você, quantas vezes chorou gravando "Ensaio"?
Faro -
Ah, nunca chorei. Meu avô uma vez me levou para ver matar boi. Pegavam o boi, amarravam no mourão e enfiavam a faca um pouquinho abaixo do pescoço. O boi começava a urrar, urrar, ia urrando até morrer. Meu avô olhou para mim: "Está chorando, menino?". "Não, vô, foi argueiro" -argueiro é cisco. "Ah, homem não chora, filho, aprende isso." E eu não aprendi.

Folha - Não? Mas você disse que não chora...
Faro -
Não aprendi muito bem. Às vezes vou me lembrar de pessoas, de Clara Nunes, Vinicius, Elis... Lembro a última vez que vi Elis, no teatro Bandeirantes. A pele do rosto e os dedos da mão já tinham murchado... Fiz um programa com Paulinho Soledade há três anos, chego aqui e não era ele... Vinicius dizia que o tempo é uma fábrica de monstros... Não era ele... Quando vou fazer essas coisas fico muito ligado no programa, na música, no enquadramento. Então não me entrego. Daí porque a emoção e a comoção não vêm. Escapo pelos detalhes.


A Música Brasileira Deste Século por Seus Autores e Intérpretes
    
Lançamento: Sesc São Paulo Quanto: R$ 200 (toda a coleção), R$ 220 (coleção com dois livros) ou R$ 10 (cada volume) Onde encontrar: Sesc Pompéia (r. Clélia, 93, tel. 0/xx/11/3871-7729, http://sesc.uol.com.br/sesc/hotsites/mpb/)




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