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Condutor do programa televisivo "Ensaio" vê episódios se transformarem em série de CDs
Fernando Faro - Arquivo vivo da MPB
Patrícia Santos/Folha Imagem
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Fernando Faro |
Coleção começa com 25 títulos contendo música e depoimentos de nomes históricos da canção popular
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PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL
A história volta a ser contada.
Acabam de ser transcritos para
CD 25 dos cerca de 400 programas que o produtor Fernando Faro, 64, tem conduzido sob os títulos "Ensaio" (de 69 a 71 e de 89 até
hoje) e "MPB Especial" (70-75)
nas TVs Tupi e Cultura.
A memória não se faz só de música. A reprodução na íntegra dos
programas une as centenas de
reinterpretações antológicas e os
depoimentos muitas vezes esquecidos de nomes da MPB.
"A Música Brasileira Deste Século por Seus Autores e Intérpretes" é o (longo) título da série.
Com continuação prometida para ainda este ano, almeja chegar a
150, 200 volumes, segundo o homem que a levou a cabo, J.C. Botezzeli (conhecido por Pelão), 57.
Leia trechos de entrevista em que
Fernando Faro rememora mais
de 30 anos da MPB.
Folha - Qual foi sua participação
efetiva no projeto dos CDs?
Fernando Faro - Foi só fazer existirem os programas. Depois, a escolha dos nomes e tudo mais ficou por conta do Pelão. Só de
uma coisa fiz questão: que a transcrição nos livros fosse absolutamente fiel, até com erros. Não ia
aceitar que alguém fosse corrigir
Nelson Cavaquinho, Cartola...
Folha - Você pode contar sua história do início?
Faro - Nasci em Aracaju. Fiquei
um pouquinho lá e fui morar em
Laranjeiras, a 18 km de Aracaju.
Aos 9 anos, fui para o Colégio Salesiano de Aracaju. Assistia missa
todo dia, comungava. Como disse
Carlos Lyra, minha cota de religião gastei toda nesse tempo. Mas
isso existe em mim de uma forma
incrível, a idéia do pecado.
Folha - Ela transbordou para seu
trabalho com a música brasileira?
Faro - Ah, debaixo do Equador
não existe pecado... Pecado é
olhar mulher nua. Essa coisa do
pecado você não acha nem no
Nelson Cavaquinho, que na canção foi beijar a mulher depois de
morta. No colégio, só havia música de igreja. Eu gostava. De música popular, lembro de uma vitrolinha de corda em casa, em que
tocava Joubert de Carvalho.
Vim para São Paulo antes dos 18
anos, para fazer direito. Fiz até o
terceiro ano, quando saí e fui trabalhar em jornal. Fazia reportagem geral e, depois, coluna de teatro e cinema, que foi o que me levou à antiga rádio Cultura. Aí comecei na TV, só querendo fazer
teatro, na TV Paulista, no finzinho dos anos 50. De lá, fui para a
Tupi, fiz o "TV de Vanguarda".
Pela primeira vez na TV do Brasil
se viram Genet, Kafka, André Gide, Thomas Mann. Fiquei nisso
até o dia em que alguém falou que
Faro era muito difícil para fazer
teatro. Quiseram que fizesse musical, porque música o pessoal entende mais. Fui fazer um programa no sábado, 23h30, o "Móbile",
misturando música e texto. Cheguei à música e fiquei nela, mas
contaminado das outras áreas.
Folha - Por que você criou o modelo de suas perguntas não serem
ouvidas pelo espectador?
Faro - Quando eu trabalhava no
jornal da TV Paulista, um dia fui
entrevistar um bandido famoso
que havia sido preso. Não tinha
muito equipamento, então pus
dentro da cela, com ele, o gravador e o microfone. Do lado de fora
da cela, eu perguntava. "Como
você passou por cima do japonês?" "Ah, eu passei porque ele já
estava morto." Pus no ar, não
apareceu a pergunta, ficou uma
coisa recortada, bonita.
Uma tomada geral na TV é nada. Você tem de chegar perto da
coisa para mostrar. Quis deixar a
pessoa só, de repente começar a
mostrar mão, boca, olho. É como
se a pessoa fosse abstraída, tirada
do quadro, e ficasse só uma história. Volta e meia as pessoas dizem
que é negócio de feijoada -orelha, boca, olho. Mas outros fizeram antes de mim -um tal de
Salvador Dalí, um tal de Picasso.
Folha - Por que você nunca levou
Roberto Carlos ao programa?
Faro - Há duas pessoas que eu
gostaria muito de trazer. Uma é
ele. A outra, a Hebe Camargo. É
pena que Hebe não queira. Diz
que fecho muito a câmera. Com
Roberto nunca tive contato
maior. Tentei contato, mas nunca
tive uma resposta. Queria fazer.
Folha - Há mais figuras imprescindíveis que nunca participaram?
Faro - Rita Lee e Raul Seixas.
Folha - Os roqueiros...
Faro - Não, fiz com muitos roqueiros. Lanny Gordin, Lobão...
Gilberto Gil nunca foi ao programa. Ele disse um dia que nunca
havia feito "Ensaio" porque Faro
não convidava. Mas convidei.
Uma vez mandou um recado de
que queria um roteirinho das perguntas. Não existe isso. Posso chegar para ele e dizer assim: "O que
você conhece do Wilson Batista?
Toca alguma coisa". Acho que ele
se apavora um pouco.
No começo, ele e Caetano não
saíam do "Móbile". Acabávamos
o programa e íamos comer na rua
Augusta. Uma vez estava lá com
Geraldo Vandré e Caetano. Chegou a Gal, que foi mostrar uma
música de Caetano, "Baby". Geraldo levantou e me disse: "Não
aguento ficar aqui, isso não é música brasileira, isso não pode ser".
Caetano falou: "Geraldo, não quero mais bem a você". Acabou ali.
Folha - João Gilberto nunca foi?
Faro - João é outro cara complicadíssimo para gravar entrevista.
É um camarada que grava um negócio e amanhã diz: "Não! Não
põe no ar! Aquela harmonia está
errada, agora faço outra...". As
coisas nunca estão acabadas para
ele. Fiz com ele o programa "Chega de Saudade", em 71. Os meninos estavam em Londres, e Caetano veio para participar. As fitas
disso foram perdidas. Só tenho o
áudio. Alguém podia se interessar, mas até agora ninguém.
Em 75, fui para a Globo, onde fiz
um programa chamado "Sexta
Super", naquela mesma linha que
nunca mais deixei de fazer. Fiquei
dois anos. Dali, fui para mil TVs,
Tupi, Bandeirantes, Record. Até
que voltei para a Cultura, em 89.
Folha - Qual foi a declaração mais
surpreendente que você já ouviu?
Faro - Foi a Zilda do Zé. Quando
fiz o programa com ela, não havia
mais o Zé da Zilda. Toda hora ela
falava "meu Zé era muito bonito"
-não era-, "meu Zé tinha cabelo encaracolado" -não tinha. De
repente ela diz: "Tenho muita
saudade do meu Zé", e começa a
chorar. Não havia esse Zé, mas se
Zilda queria assim, era assim.
Folha - E você, quantas vezes chorou gravando "Ensaio"?
Faro - Ah, nunca chorei. Meu
avô uma vez me levou para ver
matar boi. Pegavam o boi, amarravam no mourão e enfiavam a
faca um pouquinho abaixo do
pescoço. O boi começava a urrar,
urrar, ia urrando até morrer. Meu
avô olhou para mim: "Está chorando, menino?". "Não, vô, foi argueiro" -argueiro é cisco. "Ah,
homem não chora, filho, aprende
isso." E eu não aprendi.
Folha - Não? Mas você disse que
não chora...
Faro - Não aprendi muito bem.
Às vezes vou me lembrar de pessoas, de Clara Nunes, Vinicius,
Elis... Lembro a última vez que vi
Elis, no teatro Bandeirantes. A pele do rosto e os dedos da mão já tinham murchado... Fiz um programa com Paulinho Soledade há
três anos, chego aqui e não era
ele... Vinicius dizia que o tempo é
uma fábrica de monstros... Não
era ele... Quando vou fazer essas
coisas fico muito ligado no programa, na música, no enquadramento. Então não me entrego.
Daí porque a emoção e a comoção
não vêm. Escapo pelos detalhes.
A Música Brasileira Deste Século
por Seus Autores e Intérpretes
Lançamento: Sesc São Paulo
Quanto: R$ 200 (toda a coleção), R$ 220
(coleção com dois livros) ou R$ 10 (cada
volume)
Onde encontrar: Sesc Pompéia (r.
Clélia, 93, tel. 0/xx/11/3871-7729, http://sesc.uol.com.br/sesc/hotsites/mpb/)
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