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RODAPÉ
Balzac e os escombros do passado
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
O anacronismo é um tipo
de erro metodológico que
consiste em descrever fatos ou
obras do passado supondo que
eles se deram segundo conceitos e
valores que só existem no presente. O que fazer, porém, quando o
anacronismo se transforma em
estratégia narrativa? É exatamente isso que ocorre com um dos
textos mais enigmáticos de Honoré de Balzac (1799-1850): "A
Obra-Prima Ignorada", lançado
em nova tradução, seguida do ensaio "Entre a Vida e a Arte", de
Teixeira Coelho.
Publicada em 1831, a novela se
passa em 1612 e envolve figuras
históricas e ficcionais. A ação é
quase elementar. Na primeira
parte, o jovem artista Nicolas
Poussin vai à casa de François
Porbus (pintor oficial de Henrique 4º), onde conhece Frenhofer,
personagem ficcional que, numa
acalorada discussão, acaba mobilizando questões sobre arte mais
pertinentes ao século 19 de Balzac
do que ao século 17: a oposição
entre formalismo e subjetividade,
classicismo e romantismo.
"A missão da arte não é copiar a
natureza, porém expressá-la! Você não é um vil copista, mas um
poeta!", proclama Frenhofer
diante de uma tela de Porbus. E,
contrapondo-o a Rafael, comenta: "A superioridade dele vem do
sentimento interior que parece
querer romper a forma. (...) Todo
rosto é um mundo, um retrato cujo modelo revelou-se numa visão
sublime".
Na segunda parte, Poussin e
Porbus vão ao ateliê de Frenhofer
para contemplar um retrato que
este vem pintando há dez anos.
Ao se aproximarem da tela em
gestação, se deparam com "cores
confusamente espalhadas umas
sobre as outras, contidas por uma
multidão de linhas bizarras que
formam uma muralha de pintura", um corpo de mulher do qual
só se reconhece um pedaço de pé,
único "fragmento que escapara
de uma incrível, lenta e progressiva destruição". A incompreensão
dos amigos transtorna Frenhofer.
No dia seguinte, ele põe fogo no
ateliê, morrendo no incêndio.
Qual o significado dessa trama?
Seria uma antecipação da arte
abstrata ou simplesmente a crítica
do autor da "Comédia Humana"
(esse monumento da prosa realista) a um romantismo que fundiu
sujeito e objeto na busca do absoluto?
O próprio Balzac talvez tenha
nos deixado a chave: ao fazer as
questões estéticas do século 19 retroagirem 200 anos, ele não estaria nos convidando a projetar, na
sua novela, as tensões da arte do
nosso tempo? Seu anacronismo
narrativo não tornaria legítimo
um exercício consciente de anacronismo crítico?
Essa questão espinhosa está no
cerne do ensaio de Teixeira Coelho, que percorre as reverberações de "A Obra-Prima Ignorada"
nas obras de Cézanne e Picasso,
numa adaptação cinematográfica
como a de Jacques Rivette ("A Bela Intrigante") ou, de modo oblíquo, na filmografia de Godard.
Para Teixeira Coelho, a defesa
que Frenhofer faz da expressão,
em detrimento da representação
realista, anuncia o "declínio da
presença sensível das coisas reconhecíveis", que ele conecta à obra
de um pintor como Cy Twombly.
E a ambiguidade de Balzac em relação à personagem (Frenhofer é
um demente ou um visionário
"ignorado" por seus pares?) permite refletir sobre a condição essencialmente doente do artista
moderno, encarcerado em seu
corpo (que é seu mundo), e traçar
um paralelo com a trajetória de
De Kooning (pintor cuja obra tardia foi marcada pelo mal de Alzheimer).
Talvez essa apaixonada apologia da sensibilidade romântica como "convocação da vontade"
(por oposição à rigidez da sensibilidade clássica) seja uma violação
do sentido "original" de "A Obra-Prima Ignorada". Mas a novela de
Honoré de Balzac não é ela mesma, como a tela convulsiva de
Frenhofer, um "mármore surgindo entre os escombros de um palácio incendiado"?
A Obra-Prima Ignorada
Autor: Honoré de Balzac
Tradutor: Teixeira Coelho
Editora: Comunique
Quanto: R$ 22 (144 págs.)
Lançamento: 1º de julho, na Fnac (r.
Pedroso de Morais, 858, São Paulo, tel.
0/xx/11/3097-0022), às 19h
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