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São Paulo, sábado, 21 de junho de 2003

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RODAPÉ

Balzac e os escombros do passado

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

O anacronismo é um tipo de erro metodológico que consiste em descrever fatos ou obras do passado supondo que eles se deram segundo conceitos e valores que só existem no presente. O que fazer, porém, quando o anacronismo se transforma em estratégia narrativa? É exatamente isso que ocorre com um dos textos mais enigmáticos de Honoré de Balzac (1799-1850): "A Obra-Prima Ignorada", lançado em nova tradução, seguida do ensaio "Entre a Vida e a Arte", de Teixeira Coelho.
Publicada em 1831, a novela se passa em 1612 e envolve figuras históricas e ficcionais. A ação é quase elementar. Na primeira parte, o jovem artista Nicolas Poussin vai à casa de François Porbus (pintor oficial de Henrique 4º), onde conhece Frenhofer, personagem ficcional que, numa acalorada discussão, acaba mobilizando questões sobre arte mais pertinentes ao século 19 de Balzac do que ao século 17: a oposição entre formalismo e subjetividade, classicismo e romantismo.
"A missão da arte não é copiar a natureza, porém expressá-la! Você não é um vil copista, mas um poeta!", proclama Frenhofer diante de uma tela de Porbus. E, contrapondo-o a Rafael, comenta: "A superioridade dele vem do sentimento interior que parece querer romper a forma. (...) Todo rosto é um mundo, um retrato cujo modelo revelou-se numa visão sublime".
Na segunda parte, Poussin e Porbus vão ao ateliê de Frenhofer para contemplar um retrato que este vem pintando há dez anos. Ao se aproximarem da tela em gestação, se deparam com "cores confusamente espalhadas umas sobre as outras, contidas por uma multidão de linhas bizarras que formam uma muralha de pintura", um corpo de mulher do qual só se reconhece um pedaço de pé, único "fragmento que escapara de uma incrível, lenta e progressiva destruição". A incompreensão dos amigos transtorna Frenhofer. No dia seguinte, ele põe fogo no ateliê, morrendo no incêndio.
Qual o significado dessa trama? Seria uma antecipação da arte abstrata ou simplesmente a crítica do autor da "Comédia Humana" (esse monumento da prosa realista) a um romantismo que fundiu sujeito e objeto na busca do absoluto?
O próprio Balzac talvez tenha nos deixado a chave: ao fazer as questões estéticas do século 19 retroagirem 200 anos, ele não estaria nos convidando a projetar, na sua novela, as tensões da arte do nosso tempo? Seu anacronismo narrativo não tornaria legítimo um exercício consciente de anacronismo crítico?
Essa questão espinhosa está no cerne do ensaio de Teixeira Coelho, que percorre as reverberações de "A Obra-Prima Ignorada" nas obras de Cézanne e Picasso, numa adaptação cinematográfica como a de Jacques Rivette ("A Bela Intrigante") ou, de modo oblíquo, na filmografia de Godard.
Para Teixeira Coelho, a defesa que Frenhofer faz da expressão, em detrimento da representação realista, anuncia o "declínio da presença sensível das coisas reconhecíveis", que ele conecta à obra de um pintor como Cy Twombly. E a ambiguidade de Balzac em relação à personagem (Frenhofer é um demente ou um visionário "ignorado" por seus pares?) permite refletir sobre a condição essencialmente doente do artista moderno, encarcerado em seu corpo (que é seu mundo), e traçar um paralelo com a trajetória de De Kooning (pintor cuja obra tardia foi marcada pelo mal de Alzheimer).
Talvez essa apaixonada apologia da sensibilidade romântica como "convocação da vontade" (por oposição à rigidez da sensibilidade clássica) seja uma violação do sentido "original" de "A Obra-Prima Ignorada". Mas a novela de Honoré de Balzac não é ela mesma, como a tela convulsiva de Frenhofer, um "mármore surgindo entre os escombros de um palácio incendiado"?


A Obra-Prima Ignorada
    
Autor: Honoré de Balzac
Tradutor: Teixeira Coelho
Editora: Comunique
Quanto: R$ 22 (144 págs.)
Lançamento: 1º de julho, na Fnac (r. Pedroso de Morais, 858, São Paulo, tel. 0/xx/11/3097-0022), às 19h



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