São Paulo, sábado, 21 de junho de 2008

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Crítica/"Celular - 13 Histórias à Maneira Antiga"

Relatos de livro espreitam o instante que rompe a banalidade do cotidiano

MAURÍCIO SANTANA DIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Estas "13 Histórias à Maneira Antiga", de Ingo Schulze, são ainda mais simples que suas "Histórias Simples da Alemanha Oriental" (editora Lacerda, 2002, 318 págs., R$ 49), livro que o consagrou como um dos melhores escritores da nova literatura alemã. Aqui não há assassinatos, ninguém enlouquece -pelo menos não de modo evidente- nem morre abruptamente. De fato, pouco ou nada acontece nesses 13 relatos, narrados quase todos por um eu oscilante entre a apatia e a perplexidade.
Dois elementos parecem estar na base de "Celular - 13 Histórias à Maneira Antiga": a impossibilidade de transmitir experiências "numa paisagem em que nada permaneceu inalterado, salvo as nuvens"; a desconfiança sobre as capacidades da linguagem e, portanto, da própria sobrevivência do escritor.
Dispersas na periferia de Berlim, no Cairo, na Estônia, na Itália, as narrativas se atêm ao registro de acontecimentos cotidianos, uns mais divertidos, outros tensos, a maioria simplesmente maçante.
Assim Schulze assume para si a tarefa ingrata de contar histórias "à moda antiga" -note-se a ironia do subtítulo- depois que ninguém mais se interessa por ouvi-las. Mas não se trata de um mero ato de capitulação do escritor diante de uma experiência sentida como pura intransitividade.
Em todos os relatos, especialmente em "Fé, Amor, Esperança, Número 23" e "Nos Confins da Estônia", talvez os melhores do livro, Schulze se põe à espreita daquele instante que poderia romper a banalidade do cotidiano e revelar potencialidades de uma vida que está em outro lugar. Ainda que seja preciso recorrer ao patético, como no momento em que pai e filha descobrem em uma casca de laranja "o milagre de nós existirmos, o milagre de todos e o de tudo existir, o milagre por inteiro". Por certo uma epifania de segundo grau, paródia das joyceanas, mas ainda assim "epifania".

Destroços do passado
Nascido em 1962 na antiga Alemanha Oriental, em Dresden, cidade devastada pelas bombas da Segunda Guerra Mundial, Schulze se tornou, com Thomas Brussig e Wolfgang Hilbig, um dos expoentes do Wenderoman, literatura que tratava sobretudo da unificação alemã. No entanto o Muro já caiu há quase 20 anos, e agora, em "Celular", as alusões àquele período emergem aqui e ali como destroços de um passado remoto, pertencentes já a outro mundo.
O livro está repleto de frases que indicam as vacilações e dúvidas do escritor: "Como seria bonito conseguir narrar o que se seguiu à maneira de um Leskov ou de um Turguêniev"; "Então aconteceu algo que, para ser contado, requer um bocado de superação"; "Não há muito que contar. E é justamente isso, não dá para se aproximar da coisa".
E todas elas podem ser resumidas na confissão melancólica ao final do livro: "Sempre sonhei em me tornar escritor e viajar para Viena. Há 25 anos isso ainda significava outra coisa. Eu também poderia dizer que há 25 anos isso ainda significava alguma coisa".
Concluo com uma última e iluminadora citação: "Entre mim e meu trabalho não havia nenhuma relação, as duas coisas apenas se adequavam uma à outra, e uma era, por assim dizer, conseqüência da outra, como um jogo coletivo no qual eu tivesse caído por desgosto, por estar confuso e totalmente por obra do acaso."


MAURÍCIO SANTANA DIAS é professor de literatura da USP.


CELULAR - 13 HISTÓRIAS À MANEIRA ANTIGA
Autor:
Ingo Schulze
Tradução: Marcelo Backes
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 45 (352 págs.)
Avaliação: bom



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