São Paulo, sábado, 21 de junho de 2008

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RODAPÉ LITERÁRIO

Arquitetura da memória


Escritor alemão W.G. Sebald mostra em "Austerlitz" um mundo de exílio, diáspora e da falta de raízes

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

OS QUE só agora chegam à obra do W.G. Sebald (1944-2001), cujo romance "Austerlitz" ganhou recente edição brasileira, não podem evitar um sentimento contraditório de euforia -pela descoberta de uma voz única na literatura alemã da geração pós-Holocausto- e luto tardio -por sua interrupção prematura, em 2001, num acidente automobilístico. Sebald escrevia em alemão, mesmo depois de ter passado mais de 30 anos ensinando literatura contemporânea na Universidade de East Anglia, Inglaterra.
Assombrados pela história européia do século 20, seus narradores não atacam o trauma da experiência histórica no registro frontal do testemunho, mas sob a forma de uma presença oblíqua, tentando entender como "a corrente do tempo se retarda no campo gravitacional das coisas esquecidas". Um mundo de exílio e diáspora, da falta de raízes, porque brutalmente amputadas de berço, deixa-se ler através de uma extrema sensibilidade, digressiva, para com os rastros concretos e singulares que a passagem humana, mesmo soterrada, deixa pelo espaço.
A interrupção sistemática de seus romances por imagens entremeadas ao texto, ruídos visuais caídos de álbuns de família ou de arquivos esquecidos, assina inconfundivelmente o texto de Sebald.
Insólitas algumas, contundentes todas, turvadas por um véu de melancolia inexplicável, as imagens servem a paralisar o movimento natural do enredo (e da história contemporânea), como desejados corpos estranhos. Estamos longe do terreno da mera ilustração: sua função, interrogativa, é, aqui, tão essencial quanto a das palavras.
O autor de "Os Anéis de Saturno" (também traduzido no Brasil, em 2002) fez de seu personagem-título, Austerlitz, um intelectual da singularidade concreta, modelado a partir de traços biográficos e intelectuais tomados a figuras emblemáticas do período, como Wittgenstein e Walter Benjamin.
Seu fascínio pela pesquisa, cumulativa e sem fim, do otimismo monumental da arquitetura do século 19 (estações de trem, hotéis de luxo, bibliotecas e casas de campo prefigurando, na arrogância do projeto, sua ruína futura) segue em paralelo com uma visão desenganada do mundo, que se traduz em isolamento e angústia mal localizada.
O passado como culpa e falta atravessa a vida do professor de história da arquitetura.
Chegado à Inglaterra num comboio de crianças enviadas pelos pais, judeus tchecos, quando os alemães marcharam sobre Praga, levou sua vida defendendo-se intuitivamente contra toda informação que dissesse respeito à memória individual.
Mas, na meia-idade, o es- cudo cai por terra, pondo em movimento uma busca das origens, conduzindo, por vias tortas, a uma visita a Tere- zin, antiga fortaleza transformada em campo de concentração. Mas o talento narrativo de Sebald não está na apresentação dramática, espetacular, do termo deste percurso de identificação de Austerlitz.
Está em fazer emanar da atenção detida sobre singularidades concretas -memórias esparsas, vozes encadeadas, fotos recolhidas- um quadro alegórico vivo da modernidade européia.


AUSTERLITZ
Autor: W.G. Sebald
Tradução: José Marcos Macedo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 44 (288 págs.)
Avaliação: ótimo



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