São Paulo, sábado, 21 de junho de 2008

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DRAUZIO VARELLA

Paisagens da Cabeça do Cachorro


Num momento, as copas se acotovelam; noutro, surgem sulcos e depressões de relevo

PEGUE O MAPA do Brasil. Olhe para o extremo norte, do lado oeste, fronteira com Colômbia e Venezuela. Observe como os limites desenham a cabeça de um cachorro. É a região do alto rio Negro, povoada por 22 etnias indígenas que chegaram há mais de 2.000 anos, soldados e as florestas mais preservadas da Amazônia.
A Cabeça do Cachorro faz parte do município de São Gabriel da Cachoeira, que não passava de uma fileira de malocas indígenas erguidas na encosta do rio Negro, quando o naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira a avistou, em 1785, durante a Viagem Philosophica, organizada por ordem do Marquês de Pombal.
Hoje, o município tem 40 mil habitantes (95% dos quais de origem indígena) que vivem em mais de 600 comunidades espalhadas por uma área maior do que Portugal.
São Gabriel é a maior cidade indígena do país. As malocas foram substituídas por uma rua de casas geminadas que vai dar num promontório com uma igrejinha branca construída pelos padres salesianos, com o objetivo de salvar a alma dos indígenas que viviam à mercê dos abusos dos comerciantes, únicos brancos que se aventuravam por lá até o início do século 20, atraídos pelo extrativismo.
Visto da igreja, o rio é uma enorme corredeira espumante que salta sobre as pedras. Navegá-lo é tarefa para os mais experientes. Em frente à cidade, uma ilha grande, outras menores e uma praia de areia branca que submerge na cheia, quando as águas podem subir 12, 15 metros. Ao longe, a Bela Adormecida, montanhas alinhadas na forma de uma mulher deitada com as mãos entrelaçadas sobre o peito.
Essa era a paisagem mais bonita que eu conhecia, até meu horizonte estético ser ampliado com uma viagem à Cabeça do Cachorro.
De Manaus a São Gabriel é preciso navegar 1.146 quilômetros, rio Negro acima, distância maior do que a de São Paulo a Porto Alegre. De São Gabriel em direção à Venezuela e à Colômbia, só duas possibilidades: de barco, desafiando as corredeiras, ou em avião da FAB, até aterrissar nas pistas das guarnições do exército em Pari-Cachoeira, Iuaretê, Querari, Tunuí-Cachoeira, São Joaquim, Maturacá e Cucuí.
Logo acima de São Gabriel, o Negro recebe as águas do Uaupés, que percorreram mil quilômetros em terras colombianas e outros 300 no Brasil.
O encontro dos dois gigantes de águas escuras é precedido por um ritual de circunvoluções no curso das quais os leitos se estreitam e se alargam como tentáculos retorcidos para retardar a confluência inexorável.
Quando ela acontece, as águas se avolumam, invadem as margens, criam ilhas, ensaiam voltar à calha e transbordam novamente, até serem contidas por mãos invisíveis que as empurram na direção de São Gabriel.
Por horas de vôo, até onde a vista alcança, são 360 graus de mata virgem; parece o mar. Em contraposição à monotonia do alto-mar, entretanto, no rio Negro as florestas estão longe do tapete verde, homogêneo, que muitos imaginam. Ao contrário, são diversificadas e surpreendentes.
Num momento, as copas se acotovelam sem deixar uma nesga, dando a impressão de que uma flecha atirada de cima ficaria espetada no dossel; noutro, surgem sulcos escuros e depressões de relevo, árvores majestosas, galhos secos de formas bizarras e tucaneiras carregadas de flores amarelas.
Inesperadamente, a mata estanca e abre espaço para quilômetros de campinas com árvores mirradas, como se uma tesoura monumental tivesse feito a poda. Mais adiante, uma pedra gigantesca marcada por cicatrizes brancas a partir do topo, e os picos da serra ao fundo.
Em todo o percurso, os rios fazem a alegria da floresta. Nas matas baixas, parecem serpentes que se enrolam caprichosas para aprisionar pequenas ilhas; nas mais fechadas, surgem sinuosos, viram à direita e à esquerda, voltam indecisos, seguem em frente e depois se escondem para dar o ar da graça logo adiante, espelhados.
Voando sobre o verde da calha do Uaupés brasileiro, no meio do nada, começa a aparecer uma cabeça de alfinete esbranquiçada, que vai adquirindo a forma de um quartel do Exército nacional ao lado de uma pista de pouso e de um pequeno povoado: Pari-Cachoeira, um dos vértices de um triângulo formado junto com Iauaretê e Taracuá, habitado predominantemente por indígenas da etnia tucana.
Incrível construir um quartel naquela distância. Que homens obstinados...


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