São Paulo, sábado, 21 de julho de 2001

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CHINA E RÚSSIA

Chega às livrarias inédito do escritor e jornalista gaúcho

Baú de Josué Guimarães libera crônicas do socialismo

AMIR LABAKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Um extraordinário documento histórico e literário começa a abrir para o público o baú de inéditos do jornalista e escritor gaúcho Josué Guimarães (1921-1986). Após quase meio século de sua redação, finalmente ganha as livrarias "As Muralhas de Jericó - Memórias de Viagens: União Soviética e China nos Anos 50" (L&PM/ Instituto Estadual do Livro do RS).
Ao morrer precocemente, há 15 anos, Guimarães era o legítimo sucessor de Érico Veríssimo como mais importante romancista do Rio Grande do Sul e emprestava sua sabedoria a esta Folha como diretor da sucursal regional e colunista da página 2. "Muralhas", seu primeiro livro, permanecia contudo inédito.
No início de 1952, a política disputava espaço com o jornalismo e o então vereador pelo PTB vivia sua primeira "grande aventura" viajando por trás da chamada "Cortina de Ferro". Clandestinamente, Guimarães embarcava para participar de uma Conferência Econômica Internacional em Moscou para discutir as injustas relações de comércio no imediato pós-guerra.
Ao regressar, Guimarães engavetou sua extensa crônica de viagem. Como bom correligionário, atendia assim a pedidos do presidente Getúlio Vargas, temeroso este do excessivo entusiasmo que captou do viajante num jantar no Palácio do Catete.
Com ares da abertura democrática, em 1982, Josué Guimarães animou-se a revisitar o texto de juventude, entregando-o a Ivan Pinheiro Machado, seu editor. Planejava voltar à China que tanto o impressionara e complementar o livro com novas crônicas. A morte frustrou o sonhado retorno e adiou por quase duas décadas a publicação de seu livro de estréia.
Primeiro de tudo, salta aos olhos o talento do escritor. Josué é desde logo um cronista ágil e preciso, que recorre a poucas e certeiras palavras para desenhar personagens, registrar estados de espírito e reconstituir situações incomuns. Meio século passado, suas sensações ainda saltam da página com rara vivacidade.
"As Muralhas de Jericó" nos conduz através de um túnel do tempo que leva ao apogeu do stalinismo e à aurora da Guerra Fria. O ceticismo do jovem repórter vai se erodindo com o avançar de sua visita guiada pelo bloco socialista.
Guimarães passa por Praga a caminho da URSS e, embora registre ter sentido "o regime policial", elogia o pluripartidarismo de fachada. Já em Moscou, cumpre o programa básico de turismo bolchevique, visitando do Museu do Kremlin aos estúdios da Mosfilm, com ênfase nas excursões à Fábrica Stálin e à Fazenda Coletiva Lênin.
O cronista não oculta o espanto frente ao dinamismo da URSS em plena reconstrução por meio do Quinto Plano Quinquenal, centrado na indústria pesada e na mecanização da agricultura. A disputa pelas mercadorias que desaparecem das prateleiras em Moscou surge antes como prova de excesso de demanda do que de escassez de oferta. Não faltam também elogios ingênuos à aparente "liberdade de culto", à pseudoautonomia político-cultural das diversas repúblicas e à publicidade maquiada em jornalismo do "Pravda".
O impacto maior, porém, foi a pioneira visita a uma China que "adotou o socialismo (...) há apenas dois anos e meio ". "Nada me impressionara tanto", reconhece Guimarães no balanço de sua viagem de cerca de 50 mil quilômetros aéreos, "do que a China e sua gente".
Surpreso pela ausência em Pequim (mas não na cosmopolita Xangai) de sinais de miséria, Guimarães destaca que "há ordem, e a impressão mais forte é de que todos fazem alguma coisa". A radical reforma agrária catalisa comparações negativas para o Brasil. "Não há um palmo de terra abandonada", comemora.
Nosso homem em Pequim testemunha a longa comemoração de 1º de Maio, defronte da Porta da Paz Celestial, a poucos metros do líder revolucionário Mao Tsé-tung. Talvez fosse ainda possível defini-lo como "um intelectual dos mais puros", mas a inquisição obscurantista da Revolução Cultural (1966-1969) não tardaria.
O relato de Josué Guimarães carrega hoje evidente acento nostálgico. Lembra uma época de turismo delicado, mesmo o socialista, quando aviões eram veículos com luxos como salas de leitura e mesmo a limitada autonomia dos vôos preparava aos poucos a transição rumo ao desconhecido.
Mas, sobretudo, recupera um tempo nem tão distante em que fazer "deste mundo um só" era uma utopia que exigiria "engenho e arte", enquanto hoje, alcunhada de "globalização", representa a mais pura realidade, forjada meramente por técnica e capital.


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