São Paulo, quarta-feira, 21 de julho de 2010

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Altas quinquilharias


Ficar na fila equivale a "fazer questão". Não se deseja o objeto; deseja-se afirmar o próprio desejo


FALAR MAL do consumismo é sempre fácil, e poucas coisas me parecem mais tolas do que fazer fila na sede parisiense da Louis Vuitton para comprar não sei que novo modelo de bolsa "em" couro de crocodilo. Se essas turistas são tão ricas, por que não mandam o motorista ficar guardando o lugar delas na fila?
Talvez porque tudo seja uma questão de afirmar o próprio desejo. Se fosse apenas "necessidade", se a bota da Hermès fosse para elas como o litro de leite para a mãe miserável da Somália, haveria algum jeito de conseguir isso no câmbio negro, algum expediente desesperado para abocanhar o precioso artigo.
Mas não: ficar na fila funciona como o equivalente, digamos, do "fazer questão". Não se deseja apenas o objeto; deseja-se afirmar o próprio desejo.
O tempo na fila serve para atribuir mais valor à bugiganga. Não foi adquirida apenas com o cartão de crédito e sim (metaforicamente) com o suor do próprio rosto.
"Eu mereço", pode dizer a dondoca, repetindo o mantra da publicidade dos bens de luxo, e pelo menos uma vez na vida ela terá razão.
Dito isso, começo a reconsiderar minhas atitudes diante desse mercado. Leio na Folha de domingo uma reportagem bem interessante, que mostra o papel dessas altas quinquilharias para a classe C.
Há pessoas com renda familiar entre R$ 1.500 e R$ 5.000 que andam gastando até 60% do salário com bens de luxo, diz uma pesquisa feita com cem consumidores em nove bairros de São Paulo.
Pode não ser estatisticamente significativo, mas não deixa de fazer muito sentido.
O dramaturgo Bernard Shaw dizia que um dos problemas da língua inglesa (e da sociedade em que é falada) é que basta alguém pronunciar uma palavra qualquer para que se identifique imediatamente a sua classe de origem -sendo portanto odiado ou desprezado conforme o diagnóstico de quem ouve.
Por mais que a desigualdade de renda seja menor na Inglaterra do que no Brasil, é claro que lá se acumulam muitos séculos de imobilidade social, com camadas e mais camadas fixas de aristocracia, pequena classe média, plebe urbana e assim por diante, cada qual ciosa de sua própria identidade cultural.
É verdade que, por aqui, não deixa de ser evidente o contraste entre o quatrocentês levemente gutural e aperuado da classe bem alta e o sotaque popular paulistano, seja na versão mais antiga, italianada, e na mais nova, onde predominam os erres caipiras.
Para piorar, existem ainda as coordenadas geográficas -o bairro onde alguém mora diz mais sobre sua situação social do que a sua conta bancária- e o persistente teste de tornassol da cor da pele: fatores que dificultam o igualitarismo nestas bandas.
"Eppur si muove", seria o caso de dizer. Mesmo enquanto não diminuíam as diferenças de renda, a rapidez da mobilidade social no Brasil, especialmente no intervalo de uma ou duas gerações, ajudava a descomprimir uma série de tensões que, por si mesmas, tinham muito gás para desandar em guerra civil.
Eis que muita gente ascende à classe C, em termos de renda, e o acesso a produtos de luxo, paradoxalmente, ganha até um aspecto democrático.
Posso morar num bairro sem prestígio e até comer alguns plurais quando estou falando, mas sei distinguir um Rolex verdadeiro de um falsificado.
A resposta antiga a esse processo era estigmatizar o recém-chegado, chamando-o de "novo-rico", e torcer o nariz diante de seu consumo ostentatório.
Ocorre que esse exibicionismo se tornou amplamente aceito no topo mais alto da pirâmide. A cultura das celebridades e do consumismo esmagou as pretensões quatrocentonas. A bolsa Louis Vuitton oferece um passaporte para o "andar de cima", como diz Elio Gaspari.
O que sobra para os "velhos ricos"? Muita coisa, naturalmente. Mas uma em especial: a cultura, o consumo cultural.
Não por acaso, providenciam-se degustações de vinhos, cursos sobre música de concerto, viagens guiadas pelas rotas secretas da Provença. Até palestras sobre clássicos da sociologia se oferecem no mercado. Bourdieu, Veblen e Riesman valem uma visitinha.
Bolsa Louis Vuitton? Que vulgaridade... já viu a última retrospectiva de Jeff Koons em São Francisco? A fila é grande, mas estamos aí para isso mesmo.

coelhofsp@uol.com.br

AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris


Texto Anterior: Crítica Drama: Excessos fazem peça perder fio condutor
Próximo Texto: Debate: Castañeda fala sobre democracia na AL
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.