São Paulo, segunda, 21 de julho de 1997.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO
Não veio para confundir, mas organizar

NICOLAU SEVCENKO
especial para a Folha

"...E abre alas que eu quero passar!/ Nós somos os brasileiros auriverdes!/ As esmeraldas das araras/ Os rubis dos colibris/ Os abacaxis as mangas os cajus/ Atravessam amorosamente/ A fremente celebração do Universall.../
De longe em longe gritam solitários brilhos falsos/ Perfurando o sombral das figueiras:/
Berenguendéns berloques ouropéis de Oropa consagrada/ Que o goianá trocou pelas pepitas de ouro fino..."
Todo poema de Mário de Andrade era um manifesto. Ele era um agitador cultural nato.
Ao contrário do Chacrinha, não veio para confundir, mas para organizar.
Do mesmo modo que o "velho guerreiro", sempre esteve no centro da cena, até mesmo quando todos usavam suas idéias e deliberadamente omitiam seu nome.
Sua influência foi tão onipresente na cultura brasileira deste século que difundiu o hábito quase automático de não se anunciá-la.
Ele usou de todos os recursos que pôde para divulgar suas idéias. Escreveu poesia, ficção, ensaio, crítica e jornalismo. Atuou no meio intelectual paulista, em contato direto com Manuel Bandeira, Carlos Drummond e Augusto Frederico Schmidt.
Aconselhou Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Victor Brecheret, Heitor Villa-Lobos e Cândido Portinari.
Elogiou o Martin Fierro, apresentou Jorge Luis Borges aos brasileiros, pregou a abertura para a América Latina evocando o projeto do Ministro da Educação do México, José Vasconcelos e as realizações dos pintores muralistas.
Andrade articulou o Departamento Municipal de Cultura em São Paulo e o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico no Rio de Janeiro.
Deu aulas na Universidade do Distrito Federal, em São Paulo iniciou cursos de folclore e etnografia, lecionou no conservatório e criou a primeira discoteca pública.
Cendrars e Paulo Prado
Só recentemente tem ficado mais claro quais as raízes sociais e culturais mais profundas da atuação programática de Mário de Andrade.
Seus fundamentos são ambivalentes. De um lado está a inspiração do poeta franco-suíço Blaise Cendrars, um dos fundadores da poesia cubista junto com Apollinaire, boêmio anárquico, preconizador do internacionalismo democrático.
Do outro, o conservadorismo nacionalista autoritário de Afonso Arinos e Paulo Prado, carregado dos ressentimentos da cafeicultura em crise, da dinâmica imprevisível dos processos globais de modernização e do impacto desestabilizador da imigração maciça.
Da complexa síntese que Mário elaborou dessas fontes, derivariam, contraditoriamente, tanto o projeto cultural do populismo brasileiro desde Vargas, quanto o horizonte crítico da intelectualidade engajada de oposição.
O enigma Mário de Andrade ainda nos devora.


Nicolau Sevcenko é professor de história da cultura no departamento de história da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita do Universo Online ou do detentor do copyright.