São Paulo, Quarta-feira, 21 de Julho de 1999
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MARCELO COELHO
"Rocco" evita melodrama, mas se alimenta dele

"Rocco e Seus Irmãos", filme clássico de Luchino Visconti, está em cartaz no cine Vitrine, em São Paulo, despertando admirações incondicionais. Trata-se de uma grande obra, não há dúvida; mas acho importante matizar um pouco os elogios em curso.
Para o público atual, o mais empolgante é que Visconti seja capaz de prender a atenção, durante três horas, com uma história despojada, pobre, proletária, "humana". O sucesso de "Central do Brasil", do cinema iraniano e das realizações do grupo "Dogma 95" tem origem semelhante. Reencontramos, nesses filmes, o humanismo, palavra em notório desuso nos dias de hoje. E o cinema volta a ser um centro de dilemas morais, um foco de preocupações políticas, um lugar onde se discutem coisas importantes, em vez do simples passatempo a que os americanos querem reduzi-lo.
O público do Espaço Unibanco ou de outras "salas-cabeça" vai-se assemelhando, aliás, àquele notoriamente minoritário e excêntrico dos frequentadores de teatro. Mas é isso o que me incomoda em "Rocco e Seus Irmãos": o filme tem uma espécie de seriedade TBC, um certo convencionalismo que sabe evitar o melodrama ao mesmo tempo que se nutre do próprio melodrama, sem o que não poderia ser um filme sério.
Outro dia, a TV Câmara apresentou "Outubro", de Eisenstein. Que diferença! Sente-se, neste filme mudo, o quanto o cinema estava próximo da arte moderna, com sua retórica brusca, sua indexação primitiva e desconcertante, sua ênfase assimétrica, seu afásico espanto diante do mundo industrial. Visconti, comparado a Eisenstein, é um homem do século 19.
Justamente por isso, confia na industrialização. O objetivo de "Rocco e Seus Irmãos" parece ser o de provar a superioridade moral de um operário da Alfa Romeo diante do familialismo sacrificado e mártir do rapazola subdesenvolvido: este é Alain Delon, que protege o irmão canalha, ao passo que o outro irmão, o operário automobilístico, confia nos rigores impessoais da lei.
Confesso meu mal-estar diante desta apologia da ordem burguesa, desta tentativa de milanês ao germanizar o atraso italiano. Claramente, as simpatias estéticas de Visconti se voltam para Alain Delon (o irmão bom, puro, meridional), mas seu roteiro se dirige no sentido oposto. Daí surge uma contradição, que afeta não só a verossimilhança do filme (as atitudes de Alain Delon são nobres demais), como também sua coerência estética.
Tudo, em "Rocco e Seus Irmãos", tende ao melodramático. A prostituta sofrida, a luta de boxe, a mãe chorosa, a miséria, são entretanto vencidas pela suposta objetividade da câmera. Dá certo. Mas é como se soubéssemos aquilo que Visconti está evitando a todo momento.
Fellini ironizou o melodrama, criou novas formas de pungência sentimental em "La Strada" ou "Noites de Cabíria": sua riqueza está em superar o neo-realismo mantendo o "pathos" dessa escola. Criou, assim, uma espécie de catolicismo irônico, consciente do embuste religioso e ao mesmo tempo impregnado de afeição.
Visconti era sociológico demais para tanto. Sua estratégia foi inversa: extirpou a sentimentalidade do neo-realismo, congelando-o pelo temor de ser excessivo. Aristocrata e marxista, aproxima-se mal do povo. Acerta mais retratando a decadência da nobreza italiana do que a pureza popular.
Há nos filmes de Visconti um artifício célebre, o "zoom". De repente, em meio à frieza da narrativa, a câmera vertiginosamente se aproxima do rosto da personagem. O silêncio dramático, o intervencionismo do diretor, a "profundidade" desse esquema fazem muito da grandeza de Visconti entre os críticos. Em "Rocco e Seus Irmãos", o mecanismo funciona uma única vez. É que o "zoom" serve como sinal de dramaticidade, que cumpre acentuar mais nas histórias sobre a aristocracia contida e declinante do que num filme onde o caloroso povo meridional está em foco.
O ambiente de Visconti é o da decadência; é na decadência que pode encontrar uma certa nobreza estética, motivo tanto de "Ludwig" quanto de "Vagas Estrelas da Ursa". Quando Visconti fala de esperança, como em "Rocco", fala em falsete. Sua esperança é burguesa, ao passo que sua estética é aristocrática. A beleza de Claudia Cardinale, de Burt Lancaster, de Jean Sorel, de Helmut Berger, funciona em seus filmes como esfriamento, puritanismo, rigor.
Visconti depende de uma moralização da beleza masculina para afirmar uma mensagem que é ao mesmo tempo esquerdista e puritana. Não por acaso, a mãe de "Rocco e Seus Irmãos" é feia, autêntica e engraçada. Ela enfatiza e dramatiza tudo o que Visconti quer neutralizar e intelectualizar. O senso de humor, que falta em Visconti e resplandece em Fellini, está involuntariamente presente em "Rocco".
Para nós, brasileiros, "Rocco" atende ao mal-estar clássico que sentimos diante de uma sociedade onde relações pessoais são mais importantes do que a lei. A impessoalidade estética de Visconti projeta um mundo liso, literal, legalista. A beleza eticamente "errada" de Alain Delon surge como transgressão, mas transgressão reprimida. É um calvinismo sem inferno, uma efusão puritana, uma ênfase cheia de estilo o que procuramos nesse filme. Para Luchino Visconti, ser burguês já era uma revolução. Admirar seus filmes é acreditar nisso.


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