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MARCELO COELHO
"Rocco" evita melodrama, mas se alimenta dele
"Rocco e Seus Irmãos", filme
clássico de Luchino Visconti, está
em cartaz no cine Vitrine, em São
Paulo, despertando admirações
incondicionais. Trata-se de uma
grande obra, não há dúvida; mas
acho importante matizar um
pouco os elogios em curso.
Para o público atual, o mais empolgante é que Visconti seja capaz
de prender a atenção, durante
três horas, com uma história despojada, pobre, proletária, "humana". O sucesso de "Central do Brasil", do cinema iraniano e das realizações do grupo "Dogma 95"
tem origem semelhante. Reencontramos, nesses filmes, o humanismo, palavra em notório desuso
nos dias de hoje. E o cinema volta
a ser um centro de dilemas morais, um foco de preocupações políticas, um lugar onde se discutem
coisas importantes, em vez do
simples passatempo a que os americanos querem reduzi-lo.
O público do Espaço Unibanco
ou de outras "salas-cabeça" vai-se
assemelhando, aliás, àquele notoriamente minoritário e excêntrico
dos frequentadores de teatro. Mas
é isso o que me incomoda em
"Rocco e Seus Irmãos": o filme
tem uma espécie de seriedade
TBC, um certo convencionalismo
que sabe evitar o melodrama ao
mesmo tempo que se nutre do
próprio melodrama, sem o que
não poderia ser um filme sério.
Outro dia, a TV Câmara apresentou "Outubro", de Eisenstein.
Que diferença! Sente-se, neste filme mudo, o quanto o cinema estava próximo da arte moderna,
com sua retórica brusca, sua indexação primitiva e desconcertante,
sua ênfase assimétrica, seu afásico
espanto diante do mundo industrial. Visconti, comparado a Eisenstein, é um homem do século
19.
Justamente por isso, confia na
industrialização. O objetivo de
"Rocco e Seus Irmãos" parece ser
o de provar a superioridade moral
de um operário da Alfa Romeo
diante do familialismo sacrificado e mártir do rapazola subdesenvolvido: este é Alain Delon, que
protege o irmão canalha, ao passo
que o outro irmão, o operário automobilístico, confia nos rigores
impessoais da lei.
Confesso meu mal-estar diante
desta apologia da ordem burguesa, desta tentativa de milanês ao
germanizar o atraso italiano. Claramente, as simpatias estéticas de
Visconti se voltam para Alain Delon (o irmão bom, puro, meridional), mas seu roteiro se dirige no
sentido oposto. Daí surge uma
contradição, que afeta não só a
verossimilhança do filme (as atitudes de Alain Delon são nobres
demais), como também sua coerência estética.
Tudo, em "Rocco e Seus Irmãos", tende ao melodramático.
A prostituta sofrida, a luta de boxe, a mãe chorosa, a miséria, são
entretanto vencidas pela suposta
objetividade da câmera. Dá certo.
Mas é como se soubéssemos aquilo que Visconti está evitando a todo momento.
Fellini ironizou o melodrama,
criou novas formas de pungência
sentimental em "La Strada" ou
"Noites de Cabíria": sua riqueza
está em superar o neo-realismo
mantendo o "pathos" dessa escola. Criou, assim, uma espécie de
catolicismo irônico, consciente do
embuste religioso e ao mesmo
tempo impregnado de afeição.
Visconti era sociológico demais
para tanto. Sua estratégia foi inversa: extirpou a sentimentalidade do neo-realismo, congelando-o
pelo temor de ser excessivo. Aristocrata e marxista, aproxima-se
mal do povo. Acerta mais retratando a decadência da nobreza
italiana do que a pureza popular.
Há nos filmes de Visconti um
artifício célebre, o "zoom". De repente, em meio à frieza da narrativa, a câmera vertiginosamente
se aproxima do rosto da personagem. O silêncio dramático, o intervencionismo do diretor, a "profundidade" desse esquema fazem
muito da grandeza de Visconti
entre os críticos. Em "Rocco e Seus
Irmãos", o mecanismo funciona
uma única vez. É que o "zoom"
serve como sinal de dramaticidade, que cumpre acentuar mais nas
histórias sobre a aristocracia contida e declinante do que num filme onde o caloroso povo meridional está em foco.
O ambiente de Visconti é o da
decadência; é na decadência que
pode encontrar uma certa nobreza estética, motivo tanto de "Ludwig" quanto de "Vagas Estrelas
da Ursa". Quando Visconti fala
de esperança, como em "Rocco",
fala em falsete. Sua esperança é
burguesa, ao passo que sua estética é aristocrática. A beleza de
Claudia Cardinale, de Burt Lancaster, de Jean Sorel, de Helmut
Berger, funciona em seus filmes
como esfriamento, puritanismo,
rigor.
Visconti depende de uma moralização da beleza masculina para
afirmar uma mensagem que é ao
mesmo tempo esquerdista e puritana. Não por acaso, a mãe de
"Rocco e Seus Irmãos" é feia, autêntica e engraçada. Ela enfatiza e
dramatiza tudo o que Visconti
quer neutralizar e intelectualizar.
O senso de humor, que falta em
Visconti e resplandece em Fellini,
está involuntariamente presente
em "Rocco".
Para nós, brasileiros, "Rocco"
atende ao mal-estar clássico que
sentimos diante de uma sociedade onde relações pessoais são mais
importantes do que a lei. A impessoalidade estética de Visconti projeta um mundo liso, literal, legalista. A beleza eticamente "errada" de Alain Delon surge como
transgressão, mas transgressão reprimida. É um calvinismo sem inferno, uma efusão puritana, uma
ênfase cheia de estilo o que procuramos nesse filme. Para Luchino
Visconti, ser burguês já era uma
revolução. Admirar seus filmes é
acreditar nisso.
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