|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
TELEVISÃO
"Nossos Comerciais, por Favor!" analisa como a TV serviu de suporte ao discurso ideológico do Brasil pós-64
Livro decifra elo entre Flávio Cavalcanti e o regime militar
LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Você parou nesta página, viu a
foto ao lado, leu o título e pensou:
foram encontrados documentos
do Exército ou fitas com grampo
telefônico que revelam negociações obscuras e maquiavélicas entre o governo militar e o apresentador Flávio Cavalcanti, o maior
sucesso da TV nos anos 70.
Lançado este mês, o livro "Nossos Comerciais, por Favor!", da
historiadora Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira, 39, não traz essa revelação folhetinesca, mas mergulha num baú com idéias não menos intrigantes.
A obra analisa como Flávio Cavalcanti -quem tem em torno de
30 anos ou mais o viu na TV;
quem tem menos ouviu falar-
disparava em seu polêmico discurso as mesmas idéias da doutrina da Escola Superior de Guerra,
que pautou toda a concepção do
golpe de 64. E o apresentador é só
um exemplo, talvez o mais forte,
de como a televisão serviu de suporte à ideologia do regime.
O mérito do livro -que surgiu
da tese de mestrado apresentada
pela historiadora na Escola de Comunicações e Artes da USP- é ir
além das costumeiras abordagens
rasas sobre a ligação entre a televisão e o poder no Brasil.
Trechos do manual da Escola
Superior de Guerra selecionados
pela autora mostram que os militares encaravam a televisão como
instrumento indispensável à disseminação e sustentação de suas
idéias. Mas "Nossos Comerciais"
busca superar a visão de que os
poderosos da política e do governo reuniam-se em gabinetes escuros para decidir o que e como enfiar goela abaixo do telespectador.
Para isso, ela deixa claro que
não encontrou provas de que tenha havido um acordo formal entre Flávio Cavalcanti e um representante do governo. Ela chega,
inclusive, a duvidar dessa hipótese, citando momentos em que ele
teve problemas com a censura.
"Sabe aquela história de que a
TV manipula? Isso é muito simplório e infantiliza o telespectador. As pessoas se identificam
com o que querem na televisão",
afirma Lúcia. É esse princípio
(hoje aplicável, por exemplo, ao
"Programa do Ratinho", na opinião da autora) que permeia a
análise sobre o enorme sucesso de
Flávio Cavalcanti, a duração do
regime militar no Brasil e a bem-sucedida ligação entre eles.
Ao quebrar diante das câmeras
discos de cantores populares, como Caetano Veloso, dizer que
John Lennon desvirtuava a juventude, defender a família e os
"bons costumes", levar militares
ao quadro "Obrigada por Você
Existir" e xingar os homossexuais, Flávio Cavalcanti não estava fazendo nada além de traduzir
de maneira popular e atrativa cada fundamento da doutrina da
Escola Superior de Guerra.
E mais: dizer exatamente o que
os telespectadores, a maioria de
classe A e B, queriam ouvir.
No auge do sucesso, nos primeiros anos da década de 70, seu programa chegava a ter 70% de audiência e representava um terço
de todo o faturamento da Tupi. O
apresentador não saía das páginas
de jornais e revistas especializadas
em televisão. E foram esses registros que sustentaram a pesquisa
de Lúcia para sua tese.
Como quase tudo o que se produziu nos primórdios da televisão
brasileira, praticamente todas as
gravações dos programas de Flávio Cavalcanti se perderam entre
incêndios e reutilização de fitas.
Não sobrou nem a fita com a
folclórica entrevista que o jornalista fez nos EUA com o presidente John Kennedy, em 1971, sem saber falar um "a" em inglês. Por
sorte, restou do encontro uma fotografia, que está com seu filho,
Flávio Cavalcanti Jr., "para ninguém dizer que é mentira".
Lúcia teve de contar com sua
memória, a pesquisa de cerca de
1.200 edições de revistas, jornais e
raras fitas que achou na Cinemateca de SP ("Pesquisar TV no Brasil é complicado. Desde que localizei as fitas na cinemateca até o
dia em que consegui acesso a elas
se passou quase um ano.").
Assistindo aos programas (de
72, 74, 78, 79 e dois de 80), a historiadora concluiu que o discurso
de Flávio Cavalcanti não se alterou ao longo dos anos, apesar de
declarações suas na imprensa dizendo que havia se decepcionado
com "a revolução de 64".
Coincidência ou não (não, na
opinião de Lúcia), o programa começa a perder força no final dos
anos 70, simultaneamente ao enfraquecimento do autoritarismo
do governo militar. Além da
questão política, o cenário na TV
torna-se mais competitivo, com o
forte crescimento de audiência da
Globo (o "Fantástico" foi criado
especialmente para combater o
"Programa Flávio Cavalcanti") e a
TV Tupi entra crise.
Além do foco no programa, Lúcia aborda outros aspectos do vínculo entre TV e poder, como a
questão do grande número de
concessões de emissoras dadas a
políticos no período militar.
O escritor Teixeira Coelho,
orientador da tese, dá, na orelha
do livro, as diretrizes do trabalho:
"Nenhuma ditadura permanece
firme por 20 anos, como aconteceu no Brasil a partir de 1964, se
seus princípios não forem de algum modo compartilhado ou pelo menos aceitos pela maior parte
da população (...). E, como demonstra este estudo, o ideário básico do golpe que derrubou João
Goulart era perfeitamente compatível com a sensibilidade das
massas -pelo menos daquelas
que assistiam à TV e, de modo
particular, programas como o de
Flávio Cavalcanti".
O livro, então, pode dizer algo a
três categorias de leitores: os que
se interessam pela história do regime militar, os que gostam de televisão e os que pretendem entender como as duas coisas se unem.
Alguém fica de fora?
NOSSOS COMERCIAIS, POR FAVOR! - A
TELEVISÃO BRASILEIRA E A ESCOLA
SUPERIOR DE PROPAGANDA E
GUERRA: O CASO FLÁVIO
CAVALCANTI. De: Lúcia Maciel Barbosa
de Oliveira. Editora: Beca (tel. 0/xx/11/
3082-5467).144 págs. R$ 25.
Texto Anterior: Panorâmica - Conferências: Ciclo discute intervenções sobre o corpo Próximo Texto: Frases Índice
|