São Paulo, terça-feira, 21 de agosto de 2001

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TELEVISÃO

"Nossos Comerciais, por Favor!" analisa como a TV serviu de suporte ao discurso ideológico do Brasil pós-64

Livro decifra elo entre Flávio Cavalcanti e o regime militar

LAURA MATTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Você parou nesta página, viu a foto ao lado, leu o título e pensou: foram encontrados documentos do Exército ou fitas com grampo telefônico que revelam negociações obscuras e maquiavélicas entre o governo militar e o apresentador Flávio Cavalcanti, o maior sucesso da TV nos anos 70.
Lançado este mês, o livro "Nossos Comerciais, por Favor!", da historiadora Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira, 39, não traz essa revelação folhetinesca, mas mergulha num baú com idéias não menos intrigantes.
A obra analisa como Flávio Cavalcanti -quem tem em torno de 30 anos ou mais o viu na TV; quem tem menos ouviu falar- disparava em seu polêmico discurso as mesmas idéias da doutrina da Escola Superior de Guerra, que pautou toda a concepção do golpe de 64. E o apresentador é só um exemplo, talvez o mais forte, de como a televisão serviu de suporte à ideologia do regime.
O mérito do livro -que surgiu da tese de mestrado apresentada pela historiadora na Escola de Comunicações e Artes da USP- é ir além das costumeiras abordagens rasas sobre a ligação entre a televisão e o poder no Brasil.
Trechos do manual da Escola Superior de Guerra selecionados pela autora mostram que os militares encaravam a televisão como instrumento indispensável à disseminação e sustentação de suas idéias. Mas "Nossos Comerciais" busca superar a visão de que os poderosos da política e do governo reuniam-se em gabinetes escuros para decidir o que e como enfiar goela abaixo do telespectador.
Para isso, ela deixa claro que não encontrou provas de que tenha havido um acordo formal entre Flávio Cavalcanti e um representante do governo. Ela chega, inclusive, a duvidar dessa hipótese, citando momentos em que ele teve problemas com a censura.
"Sabe aquela história de que a TV manipula? Isso é muito simplório e infantiliza o telespectador. As pessoas se identificam com o que querem na televisão", afirma Lúcia. É esse princípio (hoje aplicável, por exemplo, ao "Programa do Ratinho", na opinião da autora) que permeia a análise sobre o enorme sucesso de Flávio Cavalcanti, a duração do regime militar no Brasil e a bem-sucedida ligação entre eles.
Ao quebrar diante das câmeras discos de cantores populares, como Caetano Veloso, dizer que John Lennon desvirtuava a juventude, defender a família e os "bons costumes", levar militares ao quadro "Obrigada por Você Existir" e xingar os homossexuais, Flávio Cavalcanti não estava fazendo nada além de traduzir de maneira popular e atrativa cada fundamento da doutrina da Escola Superior de Guerra.
E mais: dizer exatamente o que os telespectadores, a maioria de classe A e B, queriam ouvir.
No auge do sucesso, nos primeiros anos da década de 70, seu programa chegava a ter 70% de audiência e representava um terço de todo o faturamento da Tupi. O apresentador não saía das páginas de jornais e revistas especializadas em televisão. E foram esses registros que sustentaram a pesquisa de Lúcia para sua tese.
Como quase tudo o que se produziu nos primórdios da televisão brasileira, praticamente todas as gravações dos programas de Flávio Cavalcanti se perderam entre incêndios e reutilização de fitas.
Não sobrou nem a fita com a folclórica entrevista que o jornalista fez nos EUA com o presidente John Kennedy, em 1971, sem saber falar um "a" em inglês. Por sorte, restou do encontro uma fotografia, que está com seu filho, Flávio Cavalcanti Jr., "para ninguém dizer que é mentira".
Lúcia teve de contar com sua memória, a pesquisa de cerca de 1.200 edições de revistas, jornais e raras fitas que achou na Cinemateca de SP ("Pesquisar TV no Brasil é complicado. Desde que localizei as fitas na cinemateca até o dia em que consegui acesso a elas se passou quase um ano.").
Assistindo aos programas (de 72, 74, 78, 79 e dois de 80), a historiadora concluiu que o discurso de Flávio Cavalcanti não se alterou ao longo dos anos, apesar de declarações suas na imprensa dizendo que havia se decepcionado com "a revolução de 64".
Coincidência ou não (não, na opinião de Lúcia), o programa começa a perder força no final dos anos 70, simultaneamente ao enfraquecimento do autoritarismo do governo militar. Além da questão política, o cenário na TV torna-se mais competitivo, com o forte crescimento de audiência da Globo (o "Fantástico" foi criado especialmente para combater o "Programa Flávio Cavalcanti") e a TV Tupi entra crise.
Além do foco no programa, Lúcia aborda outros aspectos do vínculo entre TV e poder, como a questão do grande número de concessões de emissoras dadas a políticos no período militar.
O escritor Teixeira Coelho, orientador da tese, dá, na orelha do livro, as diretrizes do trabalho: "Nenhuma ditadura permanece firme por 20 anos, como aconteceu no Brasil a partir de 1964, se seus princípios não forem de algum modo compartilhado ou pelo menos aceitos pela maior parte da população (...). E, como demonstra este estudo, o ideário básico do golpe que derrubou João Goulart era perfeitamente compatível com a sensibilidade das massas -pelo menos daquelas que assistiam à TV e, de modo particular, programas como o de Flávio Cavalcanti".
O livro, então, pode dizer algo a três categorias de leitores: os que se interessam pela história do regime militar, os que gostam de televisão e os que pretendem entender como as duas coisas se unem. Alguém fica de fora?


NOSSOS COMERCIAIS, POR FAVOR! - A TELEVISÃO BRASILEIRA E A ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA E GUERRA: O CASO FLÁVIO CAVALCANTI. De: Lúcia Maciel Barbosa de Oliveira. Editora: Beca (tel. 0/xx/11/ 3082-5467).144 págs. R$ 25.


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